LEXI
LembrançasNa adolescência, busquei fazer as pazes com a minha história, mesmo que a sensação de desamparo crescesse. Ainda lembro do passado, de uma menina da cidade do interior de São Paulo, que na realidade não se parecia nada com seu gênero, e amava muito seu pai".
Lembro de suas mãos escovando os meus cabelos antes da escola, e eu carregava uma foto pequena de seu rosto na mochila. Nunca fui uma típica menina. Brincava com os meninos usando camisetas largas, bermudas, chinelos, subindo em árvores, tomando banho de chuva. Nessa época fazia coisas na intensidade que eu desejava, tentando ficar o tempo máximo possível fora de casa, principalmente quando meu pai saía para trabalhar como caminhoneiro. Sempre achei que minha mãe lidava bem com a realidade, mas não era verdade: Minha mãe era alcóolatra.
Ela nunca foi do tipo de engolir desaforo. Por esse lado sempre foi constrangedor, porque estando certa ou errada, não se importava de falar sem freio na língua.
Naquele dia, sujei-me de lama depois de brincar muito com Duca, meu amiguinho do bairro e da escola. Circulei a minha casa à procura de pistas de onde estaria Olga, minha mãe, com seus cabelos loiros e ralos, na altura dos ombros. Espiava pela janela da sala através das frestas das cortinas encardidas. Apenas um abajur ligado. A escuridão naquele dia era total. Abria a porta lentamente e meu cachorro, Confete, um vira lata manchado de preto e branco, seguia-me balançando o rabinho. Pé ante pé me aproximei dela. Mas antes sentei na soleira da porta, tirei a camiseta suja de terra e limpei meus pés. Tropecei em um copo, a bebida se espamarrou no chão, ela apenas se remexeu no sofá. A garrafa de vodca estava entre o sofá e ela, como se tivesse medo que alguém arrancasse a bebida de si. Cherei a sua respiração e tive náuseas. Meu pai estava trabalhando longe de casa. Busquei uma manta no quarto e a cobri. A fome me dominava e fui para nossa pequena cozinha. A bagunça era total. A geladeira aberta, panelas e louças sobre a pia. Cascas de bananas e batatas sobre a mesa. Pelo chão, farelos de pão. Peguei uma cadeira e subi para alcançar o armário. Eu tinha oito anos. Achei um pote com restos de bolacha doce. Sentei-me no chão, com meu cachorro Confete, para comermos as bolachas. Sacudi a caixa de leite e bebi direto do bico, devia ter uns dois goles. Aproximei-me do calendário grudado na geladeira. Risquei aquele dia, contando quantos faltavam para papai voltar. Jair, meu pai, cuidava de mim.
Um dia antes que ele chegasse, tudo mudava. A casa era organizada, a comida quentinha no fogão, eu teria que estar limpa e ir para a escola. Ele me amava, tinha certeza disso. Sempre me entregava um presente quando retornava das viagens de trabalho. Nesse dia que minha mãe dormia bêbada no sofá, acabei dormindo sem tomar banho, com o Confete deitado nos meus pés na cama. Ninguém ligaria mesmo.
A pedagoga da escola gostava de falar comigo em sua sala. E nem me importava com isso. Meus cadernos ficavam incompletos, não entregava os trabalhos, apenas me destacando em Artes. Não participava de nenhum grupo de meninas, e jogava futebol com os moleques. Gostava de participar das gincanas das festas juninas. Quando meu pai estava em casa, me sentia mimada. Ele ajeitava o vestidinho de caipira e minha mãe trançavas os meus cabelos. Ela queria se mostrar uma boa mãe ao lado dele.
E saíamos, os três, para a festa na escola. Ela perguntou sobre minhas amiguinhas e eu não respondia, saindo correndo quando avistei Duca na pescaria. Meu pai trouxe dois sacos de pipocas, refrigerantes e de bônus ganhei um beijo.
Em outras fases era minha mãe que desaparecia de casa. Papai escovava meus cabelos molhados, escutando suas músicas antigas no toca disco de vinil.
- Pai, para onde foi a mamãe?
- Fazer um tratamento no médico.
- Então vai parar de beber?
- Eu não sei, filha!
Depois ela retornava e parecia ser a melhor mãe do mundo, e nossa família era quase perfeita. Mas isso não durava muito. Eles brigavam, discutiam, ela tornava a beber, e quebrava as coisas em casa quando chegava da lanchonete que trabalhava à noite. E meu pai acabava saindo outra vez com seu caminhão, à trabalho. Quando cresci mais um pouco, aos onze anos, descobri que ela ficava nessas fazenda de reabilitação pelo SUS, para desintoxicação. Mas mamãe tinha pouca vontade de mudar. Então a culpo pelas vezes que ela não esteve em casa e meu pai me batia quando eu fazia algo errado, e também porque eu nunca fui aquela menininha de vestido florido que ele sonhava. Em muitas noites mamãe já havia dormido há muito tempo, e papai ficava na sala, com a barba um pouco crescida, fumando e ouvindo suas músicas pelo "toca disco" e eu ficava em sua companhia, sentada no chão desenhando e pintando no caderno. Era o meu passatempo preferido com ele.
Às vezes esse passado ressuscita na mente. E doeu muito quando meu pai saiu de casa pela primeira vez, aos meus nove anos. Ele se abaixou, olhando fixo para mim, dizendo que voltaria para me buscar. Agarrei-me a ele em um abraço choroso. Ele se despediu sem olhar para trás. Encolhi-me na cama, agarrada ao Confete, meu cachorro. Tudo ficou nublado aos meu olhar. Não saía de casa para a escola ou para brincar com Duca. Ficava contando os pingos da chuva que caíam do telhado no balde, imaginando em quanto tempo ele voltaria de verdade. Passou-se um mês, e mamãe começou a chegar em casa quando o sol já havia nascido, com os olhos borrados de lápis e os lábios de batom vermelho. Ela dormia quase o dia inteiro e acordava somente para ir trabalhar, e comecei a pensar que fui achada na lata do lixo. Às vezes eu comia na casa do Duca e em outras dormia lá, sem minha mãe notar. Rosane, a mãe de Duca, ficava enfurecida pelo descaso de mamãe, e catava meus piolhos e assim não passava para o Duca. Ele era um menino de cabelos escuros, muito sério, e usava óculos. Parecia sempre estar de mal com a vida, mas eu o entendia. Nunca conheceu o pai, sendo criado pela mãe, que trabalhava fora a semana inteira como empregada doméstica, dormindo em casa apenas nos fins de semana. Sua avó materna era quem segurava todas as broncas do lar. Quando montávamos um time na rua para jogar beisebol como nos filmes, a tacada de Duca era certeira e a mais forte, como se ele depositasse toda a sua raiva ali.
Contava os dias no calendário e meu pai não voltava. Não criei mágoa de minha mãe, porque ela já havia se tornado um câncer familiar de qualquer jeito. Foi do meu pai que sempre recebi refúgio sentimental. Entre nós duas um enorme círculo de rejeição e culpas cresciam. Pouco eu aparecia na escola, até que o conselho tutelar bateu em nossa porta, e fui levada de casa para um abrigo provisório. Não entedia na época porque minha mãe gritava e uns policiais à seguravam. De repente estava livre dela, com um sentimento dúbio de que talvez estivessem me levando ao encontro de papai, mas por um bom tempo ele nunca apareceu. No quarto do abrigo existiam dois beliches, algumas bonecas e Sara dormia na cama de baixo. No outro beliche, duas meninas maiores dormiam. Depois de tomar banho e ganhar roupas novas, segui para o quarto, com a mão da atendente segurando a minha. Foi quando Sara acordou e cruzou as pernas em cima da cama. Ficamos nos observando enquanto a cama de cima era arrumada com lençóis. Sara tinha os cabelos muitos grossos e pretos, com o penteado em duas tranças. A pele morena, parecendo uma índia. Quando a atendente se retirou, fiquei deitada na cama de cima, olhando para o teto, e foi quando Sara me alcançou um coelhinho de pelúcia laranja e voltou a dormir. Fiquei apertando o coelhinho macio e não adormecia, sabendo que ficaria doente nesse lugar. Doeu demais sentir o que é ser abandonada, rejeitada e mal amada. Percebia que minha mãe tinha duas filhas: "A filha dela e eu". Estava totalmente órfão de uma explicação. Mesmo que economizem gestos e palavras, os sentimentos... isso você tem ou não tem.
Aquele lugar não fazia sentindo, eu não deveria estar ali. Tinha uma casa, um cachorro e um amigo. E um dos dias Sara me disse: "Mas você não tem pais!". Na semana seguinte, levaram-me para conversar com uma psicóloga, que preencheu um formulário de cinco folhas com respostas que eu falava, e ela olhava para mim com tanta intensidade que seus olhos pareciam raios laser. A psicóloga podia até ser legal, mas ouvia na televisão sobre muitos assassinos que são encantadores também, e acabei ficando com medo dela. Nossos dias eram regras de horários e atividades. Quando pintei o sol de preto, retornei para a sala da psicóloga. Ela pediu que eu desenhasse minha família. E fiz o que veio na mente: Papai, eu e meu cachorro Confete.
Na hora da recreação, eu gostava de ficar sentada em um canto, nada tinha graça ou sentido. Ficava na expectativa de papai aparecer, mas ao contrário, depois de dois meses, minha mãe veio me visitar. Abraçou-me e beijou minha cabeça freneticamente, olhando-me com expectativa e esperança. Às vezes uma pitada de tristeza roubava sua expressão, mas retornava em um sorriso sereno como eu nunca havia visto antes. Sentia nesse momento uma forte tristeza, mas não chorei.
- Você tem algo de muito especial, minha filha, e merece uma vida muito mais significativa, me perdoe! - Pousava suavemente a mão sobre o meu cabelo, em um gesto maternal.
E então eu refletia sozinha em mente: "Eu só quero sair desse abrigo, voltar para casa, crescer e cuidar sozinha da minha vida".
Ela prometeu que eu voltaria para casa e seria tudo diferente. Entregou-me uma caixa de bombons. E todos os dias eu acordava com a sirene às sete horas da manhã, e me perguntando se estava mesmo nesse lugar. Depois de trinta dias, o conselho tutelar me levou de volta para casa. Saí aos tropeços do carro quando avistei meu pai. Nos abraçamos apertado, ele me cheirava porque eu estava limpinha e com cheirinho de shampoo no cabelo. Minha mãe chorava feito boba. A casa estava organizada com móveis novos, e no meu quarto a colcha e cortinas agora eram da Moranguinho. Almoçamos nesse dia como uma verdadeira família. Talvez eles tivessem realmente se acertado, levando em consideração que o dia a dia ficava difícil com pouco dinheiro, sem perspectivas. Por outro lado, meu pai "babava", porque minha mãe sempre foi bela, com um corpo bem definido e muito atraente. Completava meus dez anos, e um bolo de morango com chocolate foi a delícia do dia, e eu e Duca nos lambuzavamos.
Minha mãe havia perdido o emprego da noite e arrumou um trabalho no supermercado. Papai passou a cuidar mais de mim. Mas algo nele estava diferente. Seu olhar parecia distante e frio, com algum tipo de raiva. Sabia que seria uma questão de tempo, só não sabia quando seria o ponto final. Às vezes ele me batia, como se não soubesse verbalizar, quando eu não chegava na hora combinada em casa, ou se ele chegava e a casa estava bagunçada com louças na pia. Também me colocava de castigo sem rádio ou televisão, e depois, de uma hora para outra, ele estava dócil, como se nada tivesse acontecido. Mas meu amor por ele supria tudo. Aos onzes anos recomeçaram as brigas entre meus pais.
Estranho como ela era dúbia comigo. De um lado minha mãe aparentava não estar ligando, e de outro, mostrava-se protetora. Isso aconteceu quando torci o pé na escola. Em pouco tempo ela apareceu, chamou um táxi e me levou para o pronto atendimento.
Às vezes eu chegava da escola no meio de um bate-boca deles, dava meia volta, refugando-me na casa do Duca. Comecei a usar a escola como fuga de casa, e não haviam mais faltas. Quando discutiam à noite, trancava-me no quarto e escutava música do rádio pelo fone de ouvido. Não me conectava mais com meu lar aos doze anos como na época de criança, passando a odiar ficar olhando a "cara" de mamãe quando estava com olhar de embriagada. Isso contribuía para aumentar a minha aproximação com meu pai. Havia descoberto que ela estava bebendo escondido dentro do banheiro. Meu mundo se transformou apenas no meu quarto naquela casa, por algum tipo de constrangimento. Fiquei triste por semanas, e até de Duca fui me afastando. Às vezes queria desaparecer do mundo, ninguém conseguiria medir a angústia que me consumia. Sentia-me fria com as outras pessoas, como se todas estivessem simulando um personagem, como minha mãe fazia. Ela acabava perdendo os empregos pelos atrasos e faltas. Meu pai deveria ser aquele apaixonado que ficava sempre tentando, mas às vezes dizia para mim: "Só volto por você". Acabei me sentindo um estorvo na vida dele e queria chorar por isso, sentir-me culpada, mas meu coração se tornou pedra. Nessa época da adolescência, raspava meu pulso com gilete para sentir dor.
O ensino médio chegou e as drogas rolavam na praça perto da escola nos grupos de amigos. Experimentei uma vez, mas aquela sensação parecia não ser para mim. Duca já estava viciado em maconha, fazendo festinhas na sua casa, depois que a avó faleceu. Eu era aquela que ficava sentada em um canto, não achando graça de nada. Então um copo de bebida me deixou bêbada pela primeira vez. De repente tive sensações de liberdade como se qualquer coisa errada que eu fizesse, pudesse colocar a desculpa na bebida. E minha adolescência se passou muito rápido, não fiz absolutamente nada construtivo, vivendo no meio de pessoas mais velhas, sem nunca me apegar a nada, e não descobrindo quem eu era de verdade. Até os meus dezesseis anos participava de todas as festinhas do bairro, sempre no meu isolamento e bebendo. Nessa idade meu mundo desabou. Descobria, ouvindo uma conversa, atrás da porta, de mamãe e uma amiga, que meu pai havia pedido a separação. Aquilo não podia ser real, eu não queria estar ouvindo essas palavras. E assim como o sol se põe, anunciando o crepúsculo, minha vida se tornou noite para sempre. Simplesmente depois de uma viagem de trabalho, ele nunca mais voltou.
Aquela foi a pior dor que eu já havia sentido. Nenhum adeus ou até logo. Nenhum abraço longo de despedida. Fiquei encolhida em posição fetal na cama, sem conseguir chorar. E meus pulsos pagaram o preço. Minha mãe voltou a beber, sendo uma escrava do álcool, não conseguindo fazer nada longe desse veneno. Descobria que não adiantava ninguém tentar controlá-la, ou fingir que seria uma crise passageira. Foi nessa época que nunca mais coloquei uma gota de "álcool"na boca. A pior parte eram os homens no seu quarto. Depois de mais uma internação de reabilitação, ela conheceu o meu padrasto, Manoel. E passei a conviver com dois alcóolatras.
É quase impossível não ter um trauma, quando tudo que se desejava era uma vida simples em família. Isso afetou toda a minha história. Tudo que eu procurava era uma fuga. Comecei a pintar caricaturas das pessoas no centro da cidade e a cobrar um pequeno valor. Qualquer moeda perdida dentro de casa, eu resgatava para meu cofre e durante um ano juntei dinheiro.
No fim daquele ano foi a entrega do diploma do ensino médio. Duca já havia abandonado a escola. Não havia ninguém da minha família presente. Mas esse momento foi especial para mim. Como uma despedida de todos, daquele bairro, da rua que passei a infância, das alegrias que não vivi, das dores que suportei. A minha vida deveria seguir outro rumo, e eu me permiti virar o jogo aos dezoito anos, quando saí de casa.
Dentro do ônibus, fiquei pensando em todo o meu passado e porque é tão difícil apagar tudo que acontece na infância. Eu queria conseguir enfrentar, e que aquilo se tornassem cinzas. Quando não se tem uma família estruturada, ficamos sem alicerce. Os aspectos negativos da vida são muito mais reais e cruéis.
O silêncio da noite é o meu refúgio, e gosto dessa escuridão. O primeiro passo foi dado antes que eu caísse em piores tentações. Quem sabe um dia eu possa reencontrar todo o amor que deve estar escondido dentro de mim.
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Toques de Aço - Porque eu disse sim
General FictionMeu nome é Lexi, e minha história aconteceu na capital, em São Paulo. Hoje me vejo dentro de um livro de ficção, como a Leila do filme 50 tons mais escuros, a história que nunca contaram. Mas minha história é diferente de todas as histórias. "E...