[11] vejo uma fogueira no espelho

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                Espelho. Estou de frente para o espelho, mas tudo o que enxergo são mentiras. Meus cabelos loiros, ondulados e cumpridos; meus olhos azuis e vazios; roupas de marca, sempre nos mesmos tons discretos, assim como eu deveria: tudo o que me ensinaram a ser. Mas se não o fosse o que seria? Notei que nunca havia me dado o trabalho de pensar sobre, e não teria chegado a essa conclusão se não fosse por Maria.

            Maria que me criou, mesmo que meus pais estivessem em casa. Que penteou cada fio de cabelo meu todos os dias desde que nasci. Que me acalmava depois de um terrível pesadelo, ou dos comentários grosseiros da professora de ballet. Ela que me ensinou tanto, mas não podia ser chamada por seu nome verdadeiro, porque segundo meu pai, a empregada não tinha o direito de ter um. Apesar de sua história triste, era tão alegre! Vivia cantando pelos cantos, ensinando-me a ser forte como era. Uma pena eu só ter me dado conta de tudo isso quando suas mãos já não eram mais tão eficientes para o trabalho nesta casa.

            Os dias se passavam e nada mudava, continuei presa à rotina milimetricamente organizada, cada hora do dia planejada. Nos jantares em família, já estava habituada a aturar os comentários depreciativos e preconceituosos, respondendo-os apenas com um sorriso. Não havia nada que pudéssemos fazer, dizia minha mãe.

          Certo dia, no entanto, a figura no espelho parou de me encarar sem emoção. Seu rosto assumiu uma expressão de profundo desgosto. Enquanto seus olhos julgavam meus demônios mais profundos, seus lábios se moviam lentamente, dizendo sem emitir qualquer ruído, cada sílaba: ver-go-nha.

         Por isso decidi mudar. Não sabia muito bem o que viria a seguir, mas foi o início de minha revolução. Não mais permaneceria calada, mesmo que me transformassem na vilã por isso. Junto às mechas que mergulhavam em direção à pia, ia tudo aquilo o que me ensinaram a ser: tudo pelo ralo. O primeiro passo para a construção de quem sou estava dado e nada o apagaria. Dei uma última olhada no espelho antes de descer as escadas, a figura agora sorria para mim, satisfeita e orgulhosa.

          Ao ouvir o grito de meu pai quando abri a porta, tudo o que fiz foi dizer que prefiro estar com Joana. E qual outro nome poderia ter Maria, senão esse? Não é à toa que sua companhia deixou tudo o que sou em chamas.    

Alguns contos e crônicas (ou tentativas de escrevê-los)Onde histórias criam vida. Descubra agora