Capítulo 6

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SEGUNDA PARTE

2018

Eva


Chamo-me Eva, tenho 25 anos e sou filha única.

Há seis anos atrás fiz uma cirurgia e desde então a minha vida nunca mais foi a mesma. Por vezes tenho a sensação de que alguém me persegue, chego mesmo ao ponto de olhar por cima do ombro. Já para não falar dos sonhos estranhos que comecei a ter desde então, com a minha família, os meus amigos, mas também constantemente com duas pessoas que eu não conhecia, embora me parecessem muito familiares: um rapaz de cabelos escuros, olhos azuis e sorriso traquina e uma rapariga, de cabelos alourados e olhos azuis, ambos adolescentes. O rapaz não, mas a rapariga é bastante parecida com uma foto do meu próprio pai enquanto criança. O mesmo olhar. Aquele sorriso.

Certa noite, num desses sonhos, eu brincava com o rapaz no jardim da minha casa, num monte de terra, rodeados por carrinhos e tratores. Estávamos ambos sujos até às orelhas. Noutras vezes sonho com a rapariga, quando ela era bebé e a peguei ao colo e depois já com ela em adolescente, cúmplices uma da outra. Sentia-me ligada a eles. Ainda sinto, mas naquela altura continuava sem entender muito bem os meus sonhos. Não foi apenas uma vez, acontecia-me cerca de duas ou três vezes por mês, sonhos aleatórios, mas sempre com essas pessoas. Contudo, hoje sei que não eram apenas simples sonhos, sinto que são memórias embora não entendesse que memórias poderiam ser essas. Era impossível, ou assim eu julgava.

Hoje já não acredito no impossível. Existe muito mais para além daquilo que podemos ver e sentir. Cada um acredita no que quiser, mas quanto a mim, passei por coisas que me mostraram que, sem dúvida, tinha um anjo-da-guarda sempre de plantão, tendo em conta tudo o que já tive de ultrapassar.

Ter um anjo-da-guarda não me torna indestrutível, mas dá-me força e esperança. Acreditar que tenho alguém sempre ao meu lado mesmo quando me sinto tão sozinha faz-me acreditar, dá-me confiança em mim própria. Eu não tenho apenas um anjo-da-guarda, tenho dois. O meu querido avô, que o cancro levou há mais de uma década, partindo-me o coração, e a minha irmãzinha.

Sempre me senti acompanhada por ele, mas nunca por ela. Talvez não tivesse a mente aberta a esse ponto. Hoje tenho. Hoje sei que não me abandona onde quer que eu vá, onde quer que a vida me leve ela vai lá estar, dentro do meu coração, no meu pensamento... sempre. Se eu fechar os olhos consigo vê-la, consigo imaginar como seria ela e como seria a nossa vida de irmãs. Se me concentrar, consigo senti-la e nesses momentos acredito que nada, mesmo nada, é impossível. Basta deixarmos o nosso coração aberto.

Mas voltando um pouco atrás... quando acordava desses sonhos estranhos que me incomodavam de vez em quando, perguntava-me o que significariam. Tinha a certeza que não os conhecia, ainda assim sempre senti uma afinidade... um carinho tão grande por eles, como se fossem meus irmãos. Mas eu não tenho irmãos. Infelizmente, sou filha única.

Não foi por falta de birras a pedir um irmão ou irmã nem que fosse da loja dos trezentos ou de barro, – pedidos de uma criança ingénua, vai-se lá entender! – nem por falta de tentativas dos meus pais. Eles conseguiram, apenas correu mal.

Há 19 anos eu não entendia, mas hoje entendo que poderia ter corrido ainda pior. Naquela tarde podia não só ter perdido a minha irmã ou irmão (na altura a minha mãe não quis saber o sexo do bebé), podia também ter perdido a minha mãe. A minha mãezinha.

Lembram-se de vos dizer que me achava azarada antes de entrar para o bloco operatório? Passaram-se seis anos e aprendi a encarar a minha vida como nunca antes tinha feito. Hoje sinto-me sortuda, abençoada. E isso começa nos pais que tenho e pela gratidão que sinto em relação a eles por tudo o que a nossa família já viveu, já sofreu. Por tudo o que eu própria já tive de lutar e de vencer.

Quando o Coração Não PerdoaOnde histórias criam vida. Descubra agora