Nácar

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"Mulher, pelo amor de Deus, eu não já disse para ir tentar dormir e parar de tentar escrever o tédio?"

É, eu tentei seguir meu conselho.
Mas eu sou um pouco teimosa e estou entediada, então resolvi falar um pouco sobre Nácar.

       Uma jovem artesã, Nácar se prende a tudo que possa ganhar forma de arte e assim ela transforma seu vilarejo, no alto do rio Carcará, em um manancial de possibilidades para novas invenções.
A menina é solta, gosta de vestido rodado com estampas de flores e seu perfume é uma fragrância especial, a antiga colônia de alfazema que sua vó costumava usar para perfumar as roupas, que misturada com o suor de sua testa, exalava cheiro de vida e vida boa.
 

     Acorda quase que todos os dias antes do raiar do sol, corre para janela de madeira velha, em seu quarto, e suspira involuntariamente enquanto aguarda ansiosa o nascer da grande estrela bronzeada, ela gostava de encontrar novos adjetivos para nomear o que a fazia bem. E assim passava tempo no mesmo lugar, horas viajando em sua imaginação, vezes contemplando o voo dos pássaros contrastando com o azul do céu, horas observando as pessoas no trafegar do dia. Só se dava conta que tinha passado tempo demais ali quando sentia sua barriga roncar ao sentir o cheirinho de café que vinha lá da janela da dona Gertrudes.

      Depois de comer do pão quentinho que o senhor Maltês sempre trazia, Nácar se apressa em terminar de se trocar, pois dona Clara, embora a trate como uma filha, gostava de pontualidade e a esperava no armazém no centro do vilarejo.

Com seu cesto em mãos, parte em busca de novas aventuras. Era lindo e cansativo a forma como ela sorria a cada objeto encontrado pelo caminho, fosse uma moeda perdida, um alfinete enferrujado, ou até mesmo uma pedrinha com formato diferente das outras, tudo era suficiente para abrir o sorriso frouxo da menina bonita.

       Ao chegar no armazém, o ambiente ganhava vida. Nácar tinha o dom de deixar seu perfume de gentileza por onde passava e as pessoas sentiam-se em paz ao contemplar o sorriso folgado da doce senhorita. Cumprimentava dona Clara com um beijo carinhoso na buchada e recebia um afago em seus cabelos esvoaçados.
Cumpria com maestria sua função no local e ajudava a organizar os novelos que, semanalmente, chegavam, ela adorava sentir a textura dos fios e conseguia diferenciar por espessura todos da prateleira.

       Ao final do dia, despedia-se de dona Clara e retornava, ainda sorridente, pelo mesmo caminho que antes passara. Porém, seu destino não era sua humilde casinha que deixara de manhã, ela prossegue por um percurso um pouco mais longo, colhe flores pelo caminho e cantarola uma canção que falava sobre o amor:

" És tão gentil, caro sentir, deixa-me ouvir mais uma vez o teu canto, que canta com carinho sobre o amor que tenho por ti."
Sua voz não era tão bonita como de uma cantora afinada, mas sua cantoria acalentava o coração de quem a ouvia, ela tinha o dom de transmitir paz no sorrir e conforto no falar.

        Nácar diminui os passos e aquele sorriso ensolarado que carregava sempre consigo, começa a se pôr perante a entrada do cemitério da região. Lentamente ela caminha entre os túmulos até parar de frente a uma lápide branca, bem zelada, cheia de flores cheirosas. A menina se agacha, tira de dentro do cesto todos os tesouros que encontrara durante o dia e um por vez os coloca ao lado do túmulo em sua frente.

Com um suspiro ela deixa uma lágrima cair em seu colo e a limpa com delicadeza, sorrir e começa a murmurar baixinho:

- Oi, mãe, hoje as flores foram poucas, eu sei, mas tenho tanto para te contar. O café de dona Gertrudes hoje estava tão docinho, do jeito que a senhora gostava, só faltou seu pão de ló, mas eu comi uma fatia do amanteigado que o senhor Maltês me deu, estava uma delícia, mas nada comparado aos teus. Encontrei vários objetos novos pelo caminho... sabe, eu fico imaginando que você os deixou de propósito pela estrada, só para eu recolher um por um e poder ter o que te trazer. Dona Clara me deu um carinho no cabelo hoje, eu fechei os olhos e quase consegui sentir o teu perfume lá. Ah, mãe, a senhora tem feito tanta falta... mas eu estou cumprindo com o prometido. Acordo todo dia cedinho e vou contemplar o nascer da grande bola de amor, e ainda acredito no que você me disse sobre não perder um nascer, pois cada dia é único e nunca verei aquele em específico novamente, por isso, coleciono todos os dias e o nomeio com um nome novo, pois tenho a esperança de um dia poder te devolver cada um. É, mãe, agora preciso ir, mas amanhã eu volto e trago comigo resquícios do meu dia. Eu te amo e sinto teu amor.

Assim fazia Nácar todos os dias, levantava do chão, pegava seu cesto e caminhava de volta para sua casinha, feliz em ter devolvido o dia que recolhera de manhã.

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