HÁ, PELO VISTO, certas pessoas totalmente vulgares, sem nenhuma característica que as faça propícias para viver aventuras, que, entretanto, sofrem uma ou duas vezes em suas vidas aprazíveis uma experiência tão estranha que obrigaria o mundo inteiro a conter a respiração... E a pensar mais à frente! E são casos fundamentalmente deste tipo os que foram cair, por acaso, dentro da jurisdição de John Silence. Investigador do sobrenatural que, apelando para seu profundo humanitarismo, para sua paciência inesgotável e para suas grandes qualidades de simpatia espiritual, consegue com freqüência a solução de problemas da mais estranha complexidade e do mais profundo interesse humano.
Gostaria de seguir a pista e rastrear, até suas fontes ocultas, os casos mais curiosos e fantásticos, tão estranhos que às vezes eram quase incríveis.
Para ele constituía uma verdadeira paixão desentranhar conflitos adjacentes na mais íntima natureza da vida, aliviando, de passagem, os sofrimentos de uma alma humana atormentada. E, certamente, os nós que desfazia eram estranhos com muita freqüência.
A gente, é obvio, necessita uma base plausível para dar crédito a certas coisas, ao menos algo que pretenda as explicar. Todo mundo pode compreender facilmente que tais casos ocorram a um aventureiro: estas pessoas levam em si mesmos a adequada explicação de suas vidas excitantes; seus caracteres lhes impulsionam continuamente à busca de certas circunstâncias propícias à aventura. Não confiam a não ser em si mesmas e isto as satisfaz. Mas as pessoas vulgares e correntes não parecem ter direito a sofrer experiências do mais à frente; e, se as tiverem, a gente, que não espera tal coisa delas, fica abismada, para não dizer ofendida. Seu esquema do mundo se viu rudemente transtornado.
— Que tal coisa tenha acontecido a esse indivíduo! — exclamam — A um homem tão vulgar! É muito absurdo! Deve haver algum equívoco!
Entretanto, não cabe dúvida de que ao insignificante Arthur Vezin aconteceu efetivamente algo extremamente curioso, pelo que foi consultar o Dr. Silence, que o examinou minuciosamente.
Não cabe dúvida de que aquilo lhe aconteceu realmente, ao menos na aparência ou possivelmente em seu interior, mas lhe aconteceu sem dúvida, apesar das brincadeiras dos poucos amigos que escutaram o relato, os quais observaram jocosamente que "tal coisa possivelmente tivesse ocorrido a Iszard, a aquele louco do Iszard, ou para aquela velha raposa do Minski, mas nunca ao vulgar e insignificante Vezin, que estava destinado a viver e a morrer da forma mais anônima".
Não se sabe como será sua morte, mas indubitavelmente Vezin não viveu "da forma mais anônima", ao menos no referente a este episódio de sua vida, que pelo resto é perfeitamente aprazível.
Ao ouvi-lo contar sua experiência e observar a mudança que se verificava em seus olhos pálidos e delicados, ao escutar como sua voz se fazia mais suave e sossegada à medida que avançava no relato, adquiria-se o convencimento de que suas vacilantes inábeis palavras eram incapazes de transmiti-la. Cada vez que a contava, voltava a viver sua experiência.
Durante o relato se apagava até sua personalidade própria.
Mergulhava na narração, a qual quase chegou a converter-se em uma espécie de desculpa por ter vivido tal aventura. Parecia pedir desculpas e perdão por haver-se atrevido a tomar parte em um episódio tão fantástico. Pois o insignificante Vezin possuía uma alma tímida, bondosa, sensível, pouco apta para a luta, tenra para com os homens e os animais; e era incapaz de dizer não ou de reclamar os direitos que em justiça lhe deveriam ter correspondido. Todo seu plano de vida parecia excluir dela por completo qualquer episódio mais emocionante que perder um trem ou deixa esquecido o guarda-chuva no ônibus. E quando se viu misturado naqueles estranhos episódios, já tinha ultrapassado os quarenta anos mais do que ele admitia ou suspeitavam seus amigos.