· · • • • IV • • • · ·

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TODA ESTA PARTE do relato foi contada ao doutor Silence sem fazer-se muito rogar, é certo, embora não sem grande embaraço e muitas hesitações. Não podia explicar de nenhum modo — disse — como tinham arrumado a garota para lhe afetar tão profundamente, inclusive antes de ter posto seus olhos nela. Sua simples proximidade nas trevas foi suficiente para acender a fogueira. Não sabia o que era uma flechada; e, durante anos, se havia mantido afastado de toda relação sentimental com qualquer mulher, pois vivia encerrado em seu acanhamento e era excessivamente consciente de seus próprios defeitos.

Apesar de tudo, esta jovem feiticeira o tinha procurado deliberadamente. Seu comportamento não oferecia dúvida, pois sempre ia procurá-lo, em qualquer ocasião. Casta e doce era sem dúvida, mas francamente incitante também; e lhe dominava por completo com um simples olhar de seus olhos brilhantes, se é que não lhe tinha já dominado desde a primeira vez, na escuridão, com a única magia de sua invisível presença.

— Dava-lhe a sensação de que ela era sã e boa? — inquiriu o doutor —Você não teve nenhuma reação do tipo... por exemplo, de alarme?

Vezin levantou vivamente a cabeça, com um de seus inimitáveis sorrisos de desculpa. Demorou um pouco em responder. A simples lembrança de sua aventura fez avermelhar suas tímidas feições, e seus olhos pardos olharam para o chão quando respondeu.

— Não me atreveria a afirmá-lo — explicou por fim. — Tive que confessar a mim mesmo, algumas noites, que não podia dormir e ficava acordado na cama até muito tarde, que sentia certos escrúpulos de consciência. Tinha a certeza de que nela havia algo... Como diria eu?... Bom, algo ímpio. Não é que fosse impureza de nenhuma classe, nem física nem mental, o que quero dizer, mas outra coisa, meio indefinível, que me dava uma espécie de sensação vaga de réptil. Ela me atraía e ao mesmo tempo me repelia porem... porém...

Vacilou, terrivelmente ruborizado, e não pôde acabar a frase.

— Nunca me aconteceu nada igual, nem antes nem depois — concluiu confusamente. — Creio que terá sido, como acaba você de sugerir, semelhante a uma flechada. De toda forma, fosse o que fosse, era algo suficientemente forte para me fazer desejável aquele espantoso povoado encantado e ficar nele durante anos e anos só para vê-la diariamente, ouvir sua voz, contemplar seus maravilhosos movimentos e, de vez em quando, talvez tocar sua mão.

— Poderia me explicar como sentiu de onde vinha seu poder sobre você? — perguntou John Silence, olhando para qualquer lugar, menos ao acanhado narrador.

— Surpreende-me que você pergunte isso —respondeu Vezin, com a máxima dignidade que pôde expressar—. Acredito que nenhum homem pode explicar convincentemente a outro onde está a magia da mulher que o capturou em suas redes. Eu, certamente, não posso. Só posso dizer é como não dizer nada: que uma mulher me enfeitiçou, que simplesmente o saber que ela vivia e dormia sob o mesmo teto me enchia de uma extraordinária sensação de prazer.

— Mas há algo que posso dizer — prosseguiu gravemente, com os olhos acesos. — E é que ela parecia resumir e sintetizar todas as estranhas forças ocultas que tão misteriosamente atuavam na cidade. Quando caminhava de um lado para outro, tinha os sedosos movimentos de uma pantera, suave, silenciosa, e os mesmos procedimentos indiretos, oblíquos, dos habitantes dali; dava a impressão de ocultar, igual a estes, algum propósito secreto, propósito que, não me cabia dúvida, tinha- me como objetivo. Para meu terror e prazer, sentia-me constantemente vigiado por ela, e eram tais sua mestria e dissimulação que outro homem menos suscetível que eu, por assim dizer — fez um gesto suplicante—, ou menos escaldado, nunca se teria dado conta de nada. Sempre calada, sempre calma, parecia, entretanto, estar em todas partes de uma vez, de maneira que nunca podia escapar de sua vigilância. Continuamente me encontrava com o olhar fixo e risonho de seus grandes olhos — nos lugares de qualquer sala, nos corredores, me contemplando tranqüilamente de uma janela, ou em uma das ruas mais buliçosas da cidade.

ANTIGAS BRUXARIASOnde histórias criam vida. Descubra agora