— TALVEZ LHE PAREÇA um pouco precipitado este final, tão brusco e tão insípido — disse Vezin com o rosto avermelhado, lançando um tímido olhar ao doutor Silence, sentado frente a ele com seu caderno de notas — mas o caso é que... desde aquele momento... parece me haver falhado bastante a memória. Não recordo claramente como cheguei em casa, nem o que fiz exatamente.
"Acho que não cheguei a voltar para a estalagem. Só lembro vagamente ter passado por uma estrada longa e branca à luz da lua, através de bosques e povoados silenciosos e desertos; e logo veio o amanhecer e vi as torres de uma grande cidade, e assim cheguei à estação.
"Mas, muito antes disto, lembro que parei em um ponto da estrada e olhei para trás, para o vilarejo de minha aventura, situado na colina à luz da lua; e pensei que parecia um enorme gato monstruoso que descansasse na planície: suas gigantescas patas anteriores eram as duas ruas principais e as duas torres da catedral recostavam suas rasgadas orelhas contra o céu. Este quadro permanece gravado em minha mente com a máxima intensidade até o dia de hoje.
"Outra lembrança que fica desta fuga é que, de repente, lembrei-me que não tinha pago a conta da estalagem; e ali mesmo, em meio da poeirenta estrada, decidi que a pequena bagagem que ali me deixava servia de sobra para saldar esta dívida.
"De resto, só posso lhe dizer que tomei o café da manhã, pão e café em um estabelecimento dos subúrbios dessa cidade a que tinha chegado, e que logo, no mesmo dia, parti à estação e tomei o trem. Naquela mesma noite cheguei a Londres."
— E em resumo — perguntou tranqüilamente John Silence — quanto tempo você acha que esteve na tal cidadezinha?
Vezin levantou a vista, como envergonhado.
— Ah, isso... — respondeu, acompanhando-se de embaraçados movimentos do corpo — Em Londres me encontrei com a surpresa de que me tinha equivocado em meus cálculos, nada menos que em uma semana inteira. Tinha permanecido coisa de uma semana na cidade e deveríamos nos achar a 15 de setembro. E no fim,estávamos nada mais que a 10 de setembro!
— De modo que, na realidade, você só passou uma noite ou duas na estalagem? — inquiriu o doutor. Vezin vacilou, duvidou e, por fim, evitou a resposta.
— Tenho que passado o tempo de algum jeito — disse por fim — de algum jeito ou em algum lugar. Estou certo de que estive ali por uma semana. Não posso explicar mais. Limito-me a lhe expor o fato.
— E isto aconteceu o ano passado, não é? E depois, não tornou a visitar o lugar.
— Foi no outono passado, sim — murmurou Vezin — e nunca me atrevi a voltar. Acredito que nunca sentirei desejo de fazê-lo.
— E me diga — perguntou por último o doutor Silence, quando viu que o homenzinho tinha chegado já ao final de seu relato e não tinha nada mais o que contar — alguma vez leu você algo sobre as antigas práticas de bruxaria na Idade Média ou se interessou por isso alguma vez?
—Nunca! — declarou Vezin com ênfase — Nunca liguei para esses assuntos.
— Ou ao problema da reencarnação?
— Nunca... antes da minha aventura sim, depois... — replicou significativamente.
Havia, entretanto, algo mais rondando a mente do homenzinho, do qual desejava aliviar-se mediante confissão. Custou-lhe muito mencioná-lo e só depois de o doutor ter feito verdadeiros milagres de tato e simpatia, conseguiu por fim balbuciar que gostaria de mostrar os sinais que ainda tinha no pescoço, onde — conforme disse — lhe havia metido a moça com seus braços lubrificados.
Tirou a gravata e, depois de infinitas vacilações, baixou um pouco a camisa para que visse o doutor. E ali, na superfície da pele, viu-se uma linha tênue e avermelhada que cruzava o ombro e se estendia um pouco pelas costas para a espinha dorsal. Certamente, assinalava exatamente a posição que teria tomado em um braço no ato de abraçar. E, do outro lado do pescoço, um pouco mais acima, havia outro sinal similar, embora não tão claramente definida.