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DURANTE UM LONGO MOMENTO ele permaneceu ali, apoiado no muro, a sós com o caudal de seus pensamentos e emoções. Compreendia que acabava de fazer o mais adequado para atrair sobre si todas as forças deste passado ancestral. Pois naqueles beijos apaixonados tinha reconhecido a atadura de dias remotos e a havia sentido reviver. E lhe veio, com um

estremecimento, a lembrança daquela leve carícia impalpável que tinha tido lugar, no escuro corredor da estalagem. A garota o tinha dominado desde o começo e o tinha dirigido, até o fazer consumar, enfim, o ato que precisavam seus propósitos. Depois de um lapso de séculos tinha sido espreitado, caçado e conquistado.

Disto se dava conta perfeitamente e tentava tramar algum plano de fuga. Mas naqueles momentos era incapaz de dominar suas idéias ou sua vontade, pois todo o doce e fantástico frenesi de sua aventura lhe inundava o cérebro como uma cura e não podia senão ser recrear-se no glorioso sentimento de que se achava enfeitiçado. Em um mundo imensamente mais amplo e selvagem que o seu habitual.

Começava já a elevar-se lua pálida e enorme sobre aquela planície que parecia um mar, quando, por fim, decidiu partir. Os raios oblíquos da lua emprestavam às casas um novo aspecto, de modo que os telhados, brilhantes já de robusto, pareciam muito mais altos e afundados no céu que de costume, e as cúpulas e velhas torres fantásticas se estendiam até a lonjura de sua abóbada purpúrea.

A catedral era irreal entre a névoa de prata. Andou com sigilo, ocultando-se nas sombras; mas as ruas estavam desertas e silenciosas; as portas, fechadas; os portões, trancados. Não se movia uma alma. A quietude da noite reinava sobre o lugar. Parecia a cidade dos mortos ou um cemitério de lápides grotescas.

Fazendo conjeturas sobre aonde e como teria ido parar o bulício da vida pequena porta traseira que dava aos estábulos, com o propósito de alcançar sua habitação sem que ninguém o visse. Chegou sem novidade ao pátio e o cruzou mantendo-se à sombra da parede. Assim, pois, rodeou todo o pátio, caminhando nas pontas dos pés e a passos curtos, meio de lado, igual aos velhos quando entravam na sala de jantar. Horrorizou-se ao dar-se conta disso. Sentiu então um impulso estranho e violento, que se apoderou de todo seu corpo: o impulso de deixar cair a quatro patas e correr ligeiro e silencioso nesta posição. Olhou ao alto e lhe veio a idéia de saltar até o parapeito de sua janela, lá em cima, em vez de dar o rodeio natural para subir pelas escadas. Pensou em dar o salto, como se este fosse o procedimento mais singelo e natural. Era como se estivesse começando a transformar-se espantosamente em outra coisa. Afogava-se de terror.

A lua estava já no alto do céu e as sombras eram muito escuras pelo sítio por onde ia ele. Manteve-se resguardado pelas mais profundas e assim chegou ao alpendre onde estava a porta de vidro.

Mas ali havia luz; desgraçadamente, ainda deviam achar-se acordados os hóspedes. Confiando em poder deslizar pelo vestíbulo sem ser visto e chegar assim às escadas, abriu com cuidado a porta e entrou furtivamente. Então viu que o vestíbulo não estava vazio. No chão, junto à parede de sua esquerda, havia uma coisa grande e escura. A princípio pensou que devia tratar-se de algum utensílio do móveis da casa. Então, aquilo se moveu, e se deu conta de que era um gato imenso, distorcido de uma maneira estranha por um jogo de luzes e sombras. Depois, elevou-se, erguendo-se diante ele, e viu que era a proprietária da casa.

Sobre o que tivesse estado fazendo essa mulher naquele lugar e posição, só pôde aventurar uma suspeita horrível; e no momento em que ela se ergueu ante ele, deu-se conta de que estava revestida de uma estranha dignidade que instantaneamente lhe recordou a afirmação de sua filha de que era uma rainha. Ali permaneceu — enorme e sinistra, à luz da vela, a sós com ele no deserto vestíbulo. O espanto lhe fazia palpitar o coração e lhe removia até as raízes de seus medos ancestrais. Sentiu que devia inclinar-se diante dela e lhe render alguma espécie de homenagem. O impulso era veemente e irresistível, como um antigo hábito. Jogou um rápido olhar a seu redor. Não havia ninguém mais. Então, lenta e deliberadamente, inclinou sua cabeça ante ela. Fez-lhe uma reverência.

ANTIGAS BRUXARIASOnde histórias criam vida. Descubra agora