Neve.
Uma cidade com noites a beira do congelamento.
Uma garota ruiva de gorro vermelho, tomando uma xícara de café.
Liv sempre quis morar sozinha, e quando consegue, busca uma cidade atolada no frio.
Leva uma vida tranquilamente monopolizada. As...
-Lívia Thompson, 20 anos, cursando o segundo ano de Letras... Será que estaria disposta a perder tudo ao assassinar brutalmente sua amiga?
[14:45]
-eu não a matei.
[Delegacia de Investigação]
- A senhorita foi encontrada ao lado do corpo da vítima, com as mãos cobertas de sangue...
-estava chorando sua morte.
O silêncio paira no ar. Desde o início, Liv passou a ter um tremendo desgosto pelo detetive. Ela detestara o homem sentado a sua frente, com apenas uma mesa de metal gelado separando-os. Detestara aquela sala fria, escura e com cheiro ruim. Detestara estar sendo forçada a ficar presa em suas próprias lembranças.
Haviam se passado três dias desde a noite da festa. Três dias de ausência. Três dias de um profundo abismo, de onde Liv podia ouvir as gargalhadas dela.
A imagem de seus cabelos brancos tingidos de sangue não saiam de sua mente. Era como olhar para um quintal coberto de neve, e alguém derramar guache vermelha no chão, denegrindo a imagem do branco perfeito.
-nós vamos mantê-la por perto... Bem perto - ele falou, aparentemente encerrando aquele interrogatório nada oficial, justo ou sério, que havia colocado a garota.
-posso ir agora?
-dispensada.
Talvez fosse ridículo ser incriminada pela morte de Lis, mas desconfiava de que não era isso o que estavam procurando ao pedirem sua presença na delegacia. Liv sabia dos riscos que corria, mas era impossível que a polícia já tivesse conhecimento de tudo o que havia acontecido na festa.
Nem mesmo ela sabia de tudo.
Liv caminhou até o banco no lago, pegou o celular e enviou:
[15:04] Precisamos nos encontrar
Ela olhou ao redor, esperando que a resposta chegasse. Seu instinto dizia que não receberia uma mensagem de imediato. Talvez fosse errado tentar apressar o luto a ir embora, mas era uma situação de risco.
[15:47] Terry Não há nada que eu possa dizer.
Lendo, lágrimas escorreram de seus olhos castanhos. Ela limpou o rosto com a manga cumprida da blusa listrada de amarelo, rosa e azul bebê.
A garota havia evitado vê-lo desde o acontecido. Não trocou uma palavra sequer, e percebeu, com a facilidade que teve em fazê-lo, que Terry estava com o mesmo propósito.
Porém, não poderiam esperar nem mais um minuto sequer. O mundo havia virado de cabeça para baixo e Liv nunca havia enfrentado tais coisas. Precisava de ajuda.
A culpa por aquela noite enchia seu peito. Muitos detalhes estavam ocultos, suas lembranças eram fragmentos. A única certeza que tinha era como um soco no estômago. Ela se lembrava do que havia feito.
Chegou em casa, esperando sentir-se confortável. O sofá azul nunca mais seria reconfortante. Ao olhar em sua direção, podia ver sua amiga, sentada com as pernas dobradas em formato borboleta, gritando Olha a Explosão! E do outro lado estaria Liv, que jogaria uma almofada branca nela, e ambas ririam como se não houvesse amanhã.
E talvez realmente não houvesse. Não houve. Nunca mais.
A garota ruiva sentou-se no chão, no canto da sala, e chorou. Chorou a culpa da morte da melhor amiga. Chorou por não saber como aconteceu. Chorou por ter deixado acontecer.
Uma dor profunda e amarga cruzou seu peito, e ela sentiu como se não pudesse respirar. Seus pés batiam no chão, como criança fazendo birra, e ela segurava a cabeça, enrolando os dedos pelos cabelos. Sua visão estava turva, e nada poderia doer mais do que aquilo.
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Respirando fundo, bateu.
Esperou três minutos para bater novamente.
Seu estômago revirava e sua visão ainda não estava boa o suficiente, mas precisava encarar aquilo.
A casa ainda deveria estar interditada, mas não parecia ter um grande fluxo de pessoas ali. A cena do crime estava em jogo, e se a polícia não achava importante coletar provas no ambiente, Liv achava.
Ela se encostou na porta e forçou a entrada, a tranca cedeu facilmente. Na ponta dos pés, Liv entrou.
O cheiro forte de álcool ainda estava impregnado, e copos descartáveis ainda estavam jogados por todos os lugares. O aparelho de som emprestado de Miguel estava sem vida, no mesmo local de quando tudo começou. A menina se perguntou onde estaria ele agora.
Ela continuou adentrando a casa, passo após passo. Um pé na frente do outro, respirando fundo para não vomitar ou desmaiar. Quando ela o viu, não se assustou. Sabia que o encontraria ali.
Os cabelos estavam sujos e bagunçados. Descalço, seus pés estavam secos e ásperos. Jogado ao lado da grande mancha escura no chão, Terry ainda usava os suspensórios que compunham seu visual para a festa.
-você não deveria estar aqui - sussurrou, baixinho, com medo da reação do garoto.
-você não deveria estar aqui - ele arrastou os olhos azuis até ela, e Liv percebeu que era um grande esforço para ele.
A situação era deplorável, haviam respingos de sangue na camiseta branca dele, mas agora eram quase imperceptíveis pela sujeira escura que se acomodava no tecido. Seus joelhos estavam a mostra no jeans rasgado, também marcados com o sangue da irmã.
-me deixe levá-lo para minha casa...
Liv se abaixou, ao esticar os dedos para toca-lo, Terry se debateu, chorando e gritando.
-NÃO ME TOQUE, NÃO ME TOQUE!
-Terry, se acalme... Eu só quero ajudá-lo... - Liv recuou, com medo de ser acertada pelos braços agitados do rapaz.
-LIS! LIS! - os gritos se misturavam ao choro. Suas palavras não paravam para respirar, continuava chamando-a com gritos agudos e lágrimas cortantes - ME PERDOE! ME PERDOE!
Ele estava em posição fetal, jogado no chão, e seu peito esmagava qualquer resquício de vida.
-shiii, shiii, não é culpa sua, não é culpa sua! - Liv se adiantou e debruçou o corpo sobre o dele, afim de protegê-lo do mundo. Ela envolveu seu corpo em um abraço, e permitiu que ele chorasse em seu peito. As lágrimas do garoto estavam quentes e pesadas.