Caindo

57 12 6
                                    

Estendida sobre a grama amarelada e seca, havia uma toalha. Branca e verde, xadrez. O clima continuava ameno, incentivando as pessoas a saírem mais e procurar atividades ao ar livre. 

Miguel adorou a ideia de um piquenique, não queria que achassem que ele não poderia fazer algo "menos rico". Precisava mostrar que era confiável, precisava que gostassem dele.

Lis estava com as pernas levemente dobradas, sentada ao lado do garoto. Quando os olhares cruzavam, via-se um brilho diferente em seus olhos escuros. Lembravam a Liv jabuticabas bem maduras e reluzentes.

Terry sentara com as pernas afastadas e Liv se encostara em seu peito. Ele apoiou suavemente o queixo no alto de sua cabeça, sentindo o cheiro doce de canela que emanava dos fios alaranjados, sedosos e brilhantes.

De certo modo, Miguel não a olhara discaradamente. Quando Lis se inclinava para beija-lo, ele sorria, tocando seus lábios suavemente, segurando sua nuca enquanto os dedos enrolavam-se nos fios brancos. Ele parecia sincero ao lado da irmã, e Terry estava satisfeito havia algum tempo.

Por outro lado, Liv se sentia desconfortável. Os olhos castanhos de Miguel estavam sempre se distanciando da namorada para encontrar os seus. Naquele encontro, a garota procurava estar de olhos fechados o maior tempo possível, para que não precisasse desviar o olhar dos olhos questionadores e quentes de Miguel.

Encostada no garoto de cabelos escuros, Liv respirava profundamente tudo o que vinha de Terry. Sentindo sua presença, inalando seu cheiro de perfume amadeirado, tocando sua pele quando não parecia um momento inadequado.

 Ela sentia o peito do garoto subir e descer, e acompanhava os movimentos com igual delicadeza. Sentia necessidade de estar perto, de tocar as maçãs de seu rosto com as pontas dos dedos. Sentia vontade de abraça-lo e aninha-lo em seu corpo, sussurrando uma canção. Sentia a necessidade que tinha dele. 

Apesar disso, eles se divertiam. Liv e Terry tinham a oportunidade de sair como um casal na presença da amiga, sem deixa-la irritada. Agora, os encontros duplos eram frequentes, e Liv estava sempre ocupada.

Ainda assim, continuava com sua rotina, com seus livros, suas xícaras de café, e seu gorro vermelho, como sempre fora. Continuava correndo até o lago todas as tardes, sentando em seu banco predileto, até o vento gelado faze-la voltar para casa. Continuava usando seus tênis surrados para isso. Continuava frequentando a biblioteca todos os dias pares da semana.

E foi o que fez mais tarde.

A garota se dedicou aos estudos indo até a biblioteca da faculdade, e passou a noite afundada em leituras. Recusou ligações, esperando poder se justificar depois. Não permitiria acumular matérias pela vida social que havia conquistado.

Estava arrumando suas coisas para sair, já imaginando o número de mensagens que teria que responder, quando a cadeira a sua frente foi ocupada.

-eai?

Ela levantou os olhos e franziu as sobrancelhas, tentando se recordar. Se deparou com um garoto de olhos escuros e cabelo encaracolado, também escuro, mas suas feições lembravam um  Pitbull, ameaçador e vigilante.

-Guilherme, fomos apresentados na festa de Lis.

Um dos amigos de Terry, sim, ela se lembrava.

-sim, eu me lembro.

Ao longe, fingindo analisar alguns livros, estava Miguel. Bastou uma pequena olhada para saber que estavam juntos, e que seus ouvidos estavam atentos em cada palavra que ela poderia dizer.

Suas mãos começaram a suar.

-eu posso ajudar em alguma coisa?

Ele sorriu. Os dentes bem alinhados e brancos como a neve, característica da cidade. Um sorriso tão parecido com o de Miguel que poderia apostar que eram tratados na mesma clínica odontológica.

-gostaria de uma indicação de leitura.

Liv suspirou, ainda tensa.

-o que normalmente você gosta de ler?

-quero uma indicação sua, o que você gosta de ler?

Ela pensou a respeito, as mãos cruzadas em baixo da mesa, os pés, inquietos.

-gosto de clássicos. Jane Austen, por exemplo. Manoel Bandeira, se quiser algo mais fluido...

-quero algo extremamente fluido. O que acha de Cinquenta Tons de Cinza? Me parece bem interessante.

Instantaneamente a garota corou. Sentiu as bochechas queimarem e entendeu o motivo de Guilherme abrir um sorriso ainda maior.

-não tem nenhum autor renomado na literatura brasileira que pode me indicar?

-leia os poemas de Carlos Drummond. Ele tem um livro todo sobre o tema. - a garota disse, dura - Preciso ir - continuou, agarrando sua bolsa embaixo da mesa, e levantando-se para sair.

Quando passou por Guilherme, mesmo tentando andar o mais rápido possível sem parecer desesperada, ele segurou seu braço.

-Já? Ainda não acabei.

Suas mãos tremiam, os olhos castanhos, quase mel, da garota estavam marejados. Ela puxou o braço, deixando-o dolorido pela força do menino.

-Tenho um encontro com meu namorado.

Saiu depressa pela porta. Odiava ter que colocar Terry na história para se defender. Odiava depender de um homem, ela sempre conseguiu se defender sozinha. Estava horrorizada, relembra-lo que ela tinha namorado, e que por um infeliz acaso era seu amigo, fora a desculpa mais rápida que encontrou. 

Correu para fora da universidade, em direção a sua casa, sem se importar se estaria exagerando. As lagrimas ardiam pelo seu rosto, cada vez que ela se repreendia pelo que havia dito. Que presa fácil! Que mulher independente que era! Riu de si mesma, com escárnio.

Liv abriu a porta, atravessou a sala e caiu nas espumas do sofá, encolhendo-se. Chorou, até adormecer. Seus cabelos estavam desgrenhados e seu rosto inchado. La fora, a neve caiu, pesada e densa, como há semanas não acontecia. O branco tomou conta das janelas, e bloqueou as ruas. Os telefones perderam sinal por vários minutos.

Quando acordou, sua cabeça doía. Tentara, erroneamente, procurar uma resposta plausível para o que havia acontecido. Liv trocou de roupa e deitou-se no quarto, pronta para apagar novamente. 

Quando recebeu um SMS de número desconhecido, seu corpo estremeceu. Seus olhos transbordaram novamente ao entender.

[23:57] Número Desconhecido:

O Amor Natural, né?

Xícara de CaféOnde histórias criam vida. Descubra agora