18 - A Dádiva da Eternidade

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O trem para Sinaia era gélido e cheirava a peste. Alexei agradeceu aos céus por Ramona ter trazido comida, para que assim não precisassem comer ratos ou baratas que por ali corriam, como na maior parte da viagem pela Sérvia e parte da Romênia fronteiriça com outros países europeus.

Já estavam naquela viagem incessante haviam dois ou três meses, fugindo dos epicentros da peste, tuberculose, pelo que ouviram falar, e dos capangas do mestre de jogo francês Isaac Franchini, que havia se tornado obcecado por Ramona e queria tê-la em seus braços de qualquer maneira. A última esperança dos Boaventura estava na figura misteriosa e desconhecida, lembrada apenas pelas memórias da mãe durante as histórias de ninar, do tio romeno que havia herdado toda fortuna da casa Vanzeller quando ela fugiu com uma trupe de teatro portuguesa.

Não havia momento de paz ou descanso na vida dos Boaventura. Estavam a todo tempo sob a premissa de estarem sendo seguidos pelos detetives ou capangas contratados por Isaac, que sabe-se lá o que faria caso botasse as mãos nos irmãos. Ramona tinha pavor daquele homem, do tipo que a fazia ter convulsões e se urinar de medo com a simples menção de seu nome. Alexei tentava ser forte o bastante para não deixar que a irmã se sentisse desamparada numa jornada tão laboriosa.

Ouviram boatos que, além da peste, havia todo tipo de coisa na viagem pela Europa naquele tempo, desde pantomimeiros assassinos à misteriosos animais que devoravam todo sangue do corpo humano. Uma gentil bruxa sérvia deu à Alexei uma espécie de medalhão feito de puro bronze lavado, com entalhes em madeira e que, segundo à mesma, teria pertencido ao rei dos ciganos outrora, cuja grande habilidade era a de conjurar monções e tormentas torrenciais, bem como de realizar desejos mais ocultos das almas que o seguram. Não querendo contrariar a sapiência e misticidade da doce senhora que havia os acolhido como velhos amigos, aceitou e guardou o medalhão junto ao próprio peito durante toda viagem. Antes de seguirem da Sérvia para o trem de Carassaverini, no oeste da Romênia, por onde chegariam à porção oriental do país e então seguiriam à Sinaia e depois finalmente a Constanta, onde a família Vanzeller fazia história, a bruxa os advertiu:

Não há nada errado em buscar a própria felicidade sobre todo o resto – afirmou, com sua voz acolhedora e esganiçada como um corvo – Pois só um sentimento maior pode superar um sentimento poderoso.

As palavras nada significaram à Alexei ou Ramona naqueles tempos. Precisaram aguardar cerca de dez anos para finalmente compreenderem.

...

Alexei já havia se cansado se procurar pelo tio, então decidiu construir sua vida numa cidadezinha de Constanta, apoiado pelo amigo e amante Nicosuor, à contragosto de Ramona, que queria continuar sua busca incessante.

Desde que chegaram num trem, maltrapilhos, doentes, famintos e feridos, foram apoiados por um estranho misterioso, de cabelos tão negros como a pura maldade, olhos tão cinza quanto os céus num dia chuvoso e tendências extremamente misteriosas, com fetiches e desejos obscuros e assustadores. Alexei era inocente demais naquela época e se entregou aos braços de Nico, seduzido pela grandeza da beleza e intensidade da energia do homem, com uma enorme facilidade. Foram-se noites e mais noites em que se amavam como um homem devia amar uma mulher, como a mãe e o pai tanto os ensinaram quando eram crianças. Alex havia se tornado quase a senhora da casa de Nico, mandando, desmandando e sendo respeitado por todos os criados como seu próprio senhor. Estranho o fato, no entanto, que sempre faziam questão de se referir a Nico apenas como "Ele", ou "senhorio", sem nunca dizerem seu nome e, principalmente, sobrenome – o que era algo importante, para definir o nível de nobreza que a casa dele resguardava.

Tô Nem Aí (Concluída)Onde histórias criam vida. Descubra agora