folha branca.

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Apatia, incredulidade.

Consumo grandes obras, absorvo poemas, tento, quase nada fica, a noite envelhecida convida-me à suspensão de atividades. Amanhã continuarei a pensar, a sofrer, a olhar e a escutar, até às horas ensoparem o meu córtex com a rotina e as frases e as observações desnecessariamente importantes. Quem fui hoje já o fui, amanhã virá um outro, talvez esse consiga pensar e sofrer e escutar melhor que eu, quem sabe sobreviva, e retorne do mundo das almas usadas para o dia seguinte.

A expetativa está baixa, amanhã é o último dia em que namoramos, já o sei há uma semana. Não é comum saber que daqui a uma semana já não me deitarei naquela cama, não esperarei aquela pessoa, não comerei a seu lado. Mas para que servem camas se não se dorme, esperas se se aparece ausente e jantares de olhos e ouvidos roubados pelo écran antes negro, agora irrequieto, que brilha e prende com risos ou medos ou outro tipo de amarras. É estranho quando nos despedimos de quem já fomos. Gostava que amanhã ela me beijasse como dantes, não como agora, como aquela que foi e que me amava. Será que o fará? Levarei a memória de uma despedida de casal de apenas substantivo, ou honrar-me-á com um souvenir do passado? Daquele que tivemos efetivamente. Bonito, cheio, rico.

Mas depois de amanhã já não serei nada disso. Nem o feliz que era, nem o indefinido que sou. Serei folha branca, dobrada nas pontas, meio amarrotada pelo andar e pelos restantes objetos da mochila. Mas branca serei, pronto para renovada caneta ou lapiseira, não precisa de ser letra tão bonita, ou história tão alta, pode ser letra feia, desde que legível, com história simples, mas sem erros, e os que os há, que sejam parvos, tão óbvios que os note mas nem volte para corrigir, que escreva certo e constante, mais alto ou mais baixo, mas que me seja fiel, nada de coisas de papéis timbrados ou de guardanapos, apenas e só contos de um papel que talvez seja mais que um papel, mas só o será se o merecer e se se fizer a tal. Agora é negociar com a caneta, a forma e o conteúdo, uma introdução moderada, pacata, eventualmente uma rotura, um avanço, uma peripécia, mas sem planos para o final. Sem apoteose ou queda em desgraça, talvez deixe a caneta por si só, ou talvez a despeça, ou se demita, tire folga logo no dia em que se lhe acaba a tinta.

O que quer que aconteça, acontecerá bem. Afinal só há uma versão dos acontecimentos, tudo o que se chega a passar fá-lo com sucesso, portanto chegarei apenas a um lado, vindo de um caminho único e irrepetível. Creio que esta história se erguerá, a folha será suficientemente amarrotada para que a tinta decida que é mesmo ali, naquela camada de celulose deformada que assentará, para formar as frases que me farão ser quem pretendo ser. Feliz na obra, mas sôfrego pela base, agradado pela memória sem ficar amarrado à saudade. Amante e amado, David por definição, daquela maneira grandiosa e profunda, que caminha para o outro e não para o mesmo, partilhada no bom, no neutro e no mau, com distribuição justa e equilibrada, daquelas que quem nos vir na rua, sem nos conhecer nem nós o notarmos, sorria para dentro e pense nisto e em mais, que é o que eu faço quando vejo um casal assim. Mas sem pressas nem vagares. Fluindo e intervindo com serenidade e coragem, as que sejam necessárias. Chegarei lá, onde quer que seja.

post scriptum

Termino notando que o sono me sai pelos dedos. Escrever solta um pouco de tudo o que há em exagero. Tira tempo que seria útil, embora este fosse inutilmente deitado ao lixo, por uma qualquer procrastinação básica de quem foge da concretização da capacidade, da responsabilidade, da realidade, e de outras idades, às quais volta costas no momento em que existe e pouco mais.

O dia que passouWhere stories live. Discover now