inércia.

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Está tão longe. Ainda lhe chego, mas quase já não lhe toco, e o que toco parece que não é meu. Parece ser outra vida. Passaram já quatro meses, e ainda tenho a face molhada, meus olhos insistem em auxiliar a higiene facial. A mente, essa, parece não querer largar o que o quotidiano é exímio em explicitar. Ou talvez seja isto trabalho do coração. Sempre tive dificuldade em atribuir ao músculo cardíaco emoção que fosse, mas neste caso compreendo, a distância aos globos oculares dificulta-lhe a perceção do que é demais evidente - a morte de quem fomos. Nunca fui de ressurreições, nem o sou agora, o oblívio sempre se me assumou como o fado geral das coisas. A chatice é que ainda espero algumas tantas translações de existência, e o centro nervoso assusta-se com estas palpitações de nostalgia, arrependimento e saudade. 

Sei que a culpa não foi minha, mas perscruto-me em busca de uma razão, recuso a ideia de que a biblioteca de Alexandria se possa ter perdido por uma fagulha errante, por um qualquer azar inocente. Não me sinto apaixonado, muito longe disso, mas não me sinto onde estou. Tenho todas as razões do mundo para trabalhar, para salvar, para fazer a diferença, e mesmo assim não consigo concentrar-me, agarrar o foco, o meu corpo está em rejeição de si próprio. Como me posso eu cumprir se me saboto? As maiores batalhas são as que travo cá dentro, é verdade. Parece que falta uma peça que sei que já tive. Não sei se será ela, se uma outra, se serei apenas eu. Sei que estou parado. Está toda a gente a andar, a correr, a saltar, e eu cá estou, em pé mas travado, uma perna à espera da outra, as duas à espera do cérebro e este aguardando o avalo do coração, que, por já referida distância aos olhos, não adivinha e, como tal, limita-se, na ausência de melhor ocupação, ao cumprimento da mais básica das funções - a de pura e simplesmente existir.

O dia que passouWhere stories live. Discover now