temporal.

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Hoje sinto que falhei uma vida.

Não me dói pelo desgosto. Dói-me pela sua falta, presente e futura. Por como já não somos, nem conseguimos. A amargura já não vem de a perder, mas de nos perder. Desfaço-me perante a indiferença, desintegro-me quando lhe correspondo. Não sinto que seja tal e qual. Sinto que ainda espreito pela fresta. Verifico se não passa tudo de um pesadelo passageiro, fugaz, e que em breve me abraçará, me beijará, daqueles beijos infindáveis, que andam para cima e para baixo, dão a cambalhota, o pino e mergulham dentro, fundo, tão fundo que chegam a tocar em algo que transcende a mera experiência mundana, despertam um significado qualquer, único, imponente e inabalável. Agora sei que a erosão também se dá cá dentro. E está muito longe de ser apenas pelo tempo. Quem anda à chuva molha-se. E amar, amar com força, com a que se tem, faz-te gostar da chuva, apreciar a precipitação, as gotas escorrem por uma alma desejosa que ela decida desembrulhar-se, mas sem pressa nem pressão, afinal, é dela que chove. Mas por muito que lá esteja pior que cá, começa a haver infiltrações, repasses, roturas, a pele antes impermeável é agora toalha estendida sob temporal. Boa noite, o que vai ser, É para os pulmões, Esta chuva não perdoa, Nem a de fora nem a de dentro, nem eu próprio, quanto mais ela, Desculpe está a falar de quê, Outros males, boa noite. Saudades vão e vêm, tal barca em alto mar, não me faltam os momentos, faltam-me aceitar que já não voltam, onda passada não é onda futura, Mas eu gostava tanto daquela onda! Naquele alto de água havia todo um oceano, lindo, rico, cheio, tão grande que agora quase que só cabe numa lágrima, é por isso que peço sempre duas ou três, uma não dá conta do recado.

Hoje é gasto corrente, eu bem que as guardo, mas elas caem, cá dentro, onde ninguém as vê, nem o espelho. Não matam mas moem, só aí entra o tempo, o tempo e a inércia de quem se habituou à molha, nu para o vento, vestido para a chuva. Já estive triste por estar a perder o amor, agora entristeço-me pois percebo que ele já zarpou e eu não me despedi. Não disse nada! Como é que pude fechar os olhos? adormeci? pestanejei? ou não quis ver, desviei o olhar para me poupar à dor. Agora já lá foram, quem fui, quem ela foi, quem fomos juntos, e quem ela é. Sobro eu, eu que sou, eu que vejo de longe, eu que já não imagino, sendo que é apenas isso que me resta, isso e as lágrimas e os oceanos. Vamo-nos encontrando, assim, à beira mar. Já lá vai tão longe, será que se eu nadar, não, já zarpou o navio, já passou a onda, já nela cessou a chuva. Agora é em mim o temporal, aquele que me lembra quem fui, o quanto a amei, e quem não voltarei a ser.

Hoje chove.

Hoje sinto que falhei uma vida.

O dia que passouWhere stories live. Discover now