retrospetiva.

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Estou a entrar, a fechadura perra de sempre autoriza-me o regresso. Cheira a refugado, cebola, alho francês, outros tantos legumes que levaste contigo, hoje começaste a cozinhar sem mim. Boa noite. Penduro o casaco, vou à sala deixar a mochila sobre uma das cadeiras. A manta do sofá está meio caída, como todos os dias, nem tirada, nem bem posta, a deslizar por um dos lados, sendo isso o que varia. Vou à cozinha e dou-te um beijo na face, não sei se sorris, antes sorrias, prefiro não verificar, sou mais feliz assim. Falamos um pouco, o que fiz, o que fizeste, és sempre a mais faladora e nunca dás tanta importância ao que eu digo como ao que dizes, mas eu gosto de ti assim. Uma matéria mais complicada, uma qualquer logia que te mói os miolos, a visita a um dos animais que tanto gostas, é assim, era assim que eu ouvia. Por vezes também não prestava muita atenção, parece que já tinha aquele cromo, mas não gostava menos por isso. Ajudo com a comida, cada um serve o seu prato, siga um episódio de friends, ou dois, consoante a matéria em atraso, ou mesmo a relevância que lhe damos. Talvez estudemos um pouco, talvez não. Se vais tomar banho chamas-me sempre por uma qualquer coisa insignificante. Sempre achei uma atitude mimada, mas não deixo de ir. Antes fazíamos do momento em que nos vestiamos uma altura de cumplicidade, intimidade, agora resguardas-te mais, eu respeito. Já não nos deitamos às mesmas horas, fico sempre até mais tarde na sala. Já dói, mas não dói tanto. Já sei, mas posso viver como se não soubesse. Não é perfeito, ideal, desejável, mas é seguramente alguma coisa, tem o seu conforto. Já disseste que temos de mudar, cada um para seu lado, fui eu o primeiro a dizer isso aliás, há muitos meses atrás, mas agora não o dizes só nas discussões, nem só quando estás triste. Provavelmente estamos os dois tristes, mas eu estou bem, não me sinto ótimo, mas posso viver assim, à vontade, a sério.

Daqui a uns dias vais encontrar a casa para a qual eu me mudarei, e daqui a uns meses, quando escrever este texto, estarei tão confuso como estou agora, não sei em que tempo vivo, nem no que quero viver. O abismo é negro. Mas há tantos. Neste texto estou a ignorar completamente, mas também sofro para caraças quando foges da minha mão no sofá, ou quando a tua cabeça se evade de um beijo na boca, ou na face ou na testa, e os que acertam são recebidos com um olhar de indiferença tão abismal que me perfura o abdómen.

Estou perdido. Não sei em que tempo estou. Agora quero ficar aqui, mas vou-me embora, no futuro quererei ir-me embora mas voltarei aqui.

Paz de espírito, onde está? E farás tu, alguma vez, outra vez parte disso?

O dia que passouWhere stories live. Discover now