paz.

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Sou só um estranho que vos está a atrasar, adeus, respondi eu com um genuíno sorriso na cara.

A existência tem destas coisas, se não te encontrei nessa noite por ti própria, encontrei-te mais tarde num qualquer corredor dentro da minha mente. Esperava que fosses ao churrasco, mas teve de ir a montanha a Maomé. Antes de virares a esquina já sabia que eras tu, ser o meu cérebro a programar a simulação tem destas vantagens. Falámos brevemente, tanto quanto seria numa versão real do evento, não me lembro das palavras, mas lembro-me das ideias. Tenho grande apreço por estas porções de experiência, nas quais palavras são ainda insuficientes para significar o que se pensa, como um navegador quatrocentista que, por azar ou distração, se esqueceu de mapear as terras que acabara de descobrir, Onde são, Não to sei dizer, De que forma eram, Não to consigo explicar, apenas sei que lá estive e lá vivi. Talvez seja assim a relação entre palavras e ideias, símbolos e sons que mapeiam o funcionamento das redes neuronais, sem os quais não sabemos voltar nem explicar as sensações e os pensamentos. Voltando ao fugaz encontro, tenho a dizer que mal me olhaste nos olhos, parecias procurar por outra coisa, mas não levei a mal. Trocámos palavras que queriam dizer muito mais que elas próprias. Há cumplicidades que não cabem numa frase. Inesperadamente avançaste pelo meu lado esquerdo, ao que eu respondi com um entrelaçar de braços pelos cotovelos, pelo que ficámos estranhamente de ombro a ombro, cada um virado para seu lado. A singularidade do comportamento denunciou a natureza surreal do encontro, mas ainda não tinha terminado tudo o que te queria dizer, ou talvez apenas quisesse que ficasses mais uns instantes, não sei quanto tempo isso é, ninguém sabe se o tempo nos sonhos tem a velocidade do tempo cá fora. 

Cedo chegaram amigos teus, pareciam ter pressa, aí percebi o que tinha de fazer. Há realizações que, quando vêm, trazem uma paz e um esclarecimento tais, que a cara, real ou sonhada, deixa-se permear pelo sorriso da alma, um sorriso tão grande e brilhante que enche a cabeça, os pulmões e a barriga. Não sei se amar é deixar ir, sei que deixar ir é difícil. Já o tinha feito para distâncias empíricas, tinha sido mais complicado para distâncias mentais, mas agora estávamos dentro da minha cabeça e eu não tinha por onde evitar o que já se torna inevitável. De repente, estar ali, de braço dado em contrapasso, deixou de fazer sentido. Acho que o carinho nunca caberá em qualquer som que saia da minha boca, mas também considero que já é altura de partir. Temos sítios à espera que lá cheguemos, temos longas jornadas ainda a percorrer. Desconhecidos não seremos, porque te sei demasiado bem, não obstante podemos ser estranhos, podemos saber que o cérebro do outro não é nosso, que o sangue do outro não é nosso. Voltarei a reclamar o meu coração para mim. Então dei-me uma oportunidade, e uma das tuas amigas perguntou, Quem é que ele é.

Aí respondi, com um sorriso genuíno na cara, Sou só um estranho que vos está a atrasar, adeus.

E segui o meu caminho.

O dia que passouWhere stories live. Discover now