II - A LIBERDADE

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- Tato, o Gabriel te ligou? Cara, o show é sábado eu não sei o que fazer! Ele que cuidou desse contrato, fechou as bandas e os fornecedores. Estou perdida. É muita irresponsabilidade! - vociferava ao telefone - Não vou ligar na casa dos pais dele, sei que ele está lá, mas não estou a fim de conversar com família agora.

- Ele me passou as informações, fica tranquila que vou estar lá e a gente se ajuda - tranquilizou o amigo, que acompanhou de perto toda a relação do casal desde o primeiro encontro.

Antes de sair de casa, olhou para a mão esquerda e, decidida, tirou a aliança e colocou em cima do aparador próximo à porta. "Se é assim que ele quer, é assim que vai ser", pensou e fechou a porta, seguindo sozinha até o local do show. Ainda um pouco desnorteada, a cabeça fervilhava com mil pensamentos ao mesmo tempo enquanto dirigia em direção ao evento.

Aquele era um show importante, pois há algum tempo não trabalhava com bandas de renome, tinha optado por eventos menores e mais seguros e trazer uma banda com um cachê um pouco mais elevado era um risco, sobretudo, para um show de rock e um encontro de motociclistas. Não que ela achasse a Dreams uma grande banda de rock, na verdade, considerava os rapazes medianos, mas era uma nova modinha entre os mais jovens. Por isso, a expectativa de sucesso nas vendas.

Mas apostar em um show em meio a esse caos particular era arriscado. Ela pensava no show que precisava dar certo, as contas que precisavam ser pagas e, sobretudo, como seria encarar Gabriel depois de tudo. "Será que ele teria coragem de aparecer no show?", se questionava. Tato tinha garantido que ele não iria. "Se ela é tão poderosa assim, consegue lidar com isso sozinha" - previu que seriam as palavras de Gabriel. Então, conseguiria lidar com tudo sozinha mesmo e de forma primorosa.

Estranhamente, não sentia a tristeza intrínseca dos términos: a vontade de chorar, de comer doces, de beber muito, ou de sentir um vazio. Essas não eram de longe as sensações que passavam em sua cabeça enquanto estacionava o carro, descarregava alguns suprimentos para o evento e fazia os telefonemas para os últimos acertos da noite. O mundo urgia por atitudes e energia, por uma existência constante e presente. A ausência de Gabriel não significava absolutamente nada.

🎸🎸🎸

Estava dispersa quando girou a maçaneta da porta e entrou no camarim, sem olhar para ninguém se dirigiu à mesa dos lanches. Ajeitou os pães e anotou em um pequeno caderno os itens que faltavam para completar o cattering exigido pela banda, sem perceber que os músicos já estavam por ali.

- Olá! Tudo bem? - indagou um rapaz careca e baixinho, vindo em sua direção.

- Oi, ah, tudo bem? - respondeu, automaticamente, sem olhar diretamente para o vocalista da banda.

- Muito obrigado pela recepção, está tudo perfeito, acho que o show vai ser um sucesso.

- Com certeza, o público veio em peso e a noite está ótima - respondeu, finalmente, se virando para ele - achamos que iria chover, o que poderia atrapalhar um pouco, mas ainda bem que deu tudo certo.

- Eu sou David, vocalista da Dark Side, acho que não nos falamos ainda, tratamos direto com o Gabriel. Você é a esposa dele, não é?

Ela pensou na briga, na penúltima noite e no futuro em uma sinapse que deve ter demorado não mais do que dois segundos. "Ainda sou a esposa de Gabriel?" Ela precisava responder e qualquer resposta, naquele momento, seria definitiva.

- Ainda não nos conhecemos. Sou Karen. Vocês querem mais cerveja? - questionou, tentando mudar o rumo da conversa e se esquivando de uma resposta.

David percebeu que a pergunta não havia sido feita em boa hora, na verdade, poderia ter adivinhado, já que, se Gabriel não apareceu no show que havia organizado, alguma coisa de estranha devia ter acontecido.

- Já conhece os outros caras da banda?

- Ainda não - ao responder o questionamento mudou o foco de visão para o restante da sala, onde dois outros rapazes afinavam seus instrumentos, sentados em um pequeno sofá encostado na lateral da parede.

- O baterista já está montando as coisas no palco e o outro guitarrista esqueceu um pedal no carro e foi buscar. Mas este é Luiz, o baixista e o Marcelo, nosso guitarra base.

- Prazer rapazes - disse elevando as mãos para um cumprimento, nenhum dos dois se levantou, mas sorriram e assentiram com a cabeça - se precisarem de algo estou à disposição, vou trazer os itens que faltam aqui, ok? Um bom show a vocês!

- Valeu! - disseram Marcelo e Luiz, entoando um agradecimento empolgado.

Com pressa, ela se dirigiu à porta, já pensando em todos os itens que precisavam ser providenciados. Ainda faltava ver se a outra banda havia chegado, se a portaria estava controlada e se o freezer do bar, finalmente, tinha conseguido gelar algumas cervejas. "Seria muito difícil acalmar os ânimos de tantos motociclistas se a cerveja estivesse quente", pensava. Olhando as anotações que tinha feito no caderno enquanto andava não percebeu que o outro guitarrista entrava no camarim.

- Opa! Tudo bem? - exclamou Ricardo ao trombar com Karen.

Ela olhou para cima e no mesmo instante congelou. "Meu Deus!" E por um instante, pensou se havia dito 'Meu Deus' em voz alta, ou se estava tendo uma síncope, se era delírio, ou se tinha desmaiado. Ficou incrédula, parada, sem sair da frente do guitarrista. Os olhos se encontraram e o esbarrão, que não durou mais do que instantes, para ela, significaram algo em torno de 30 minutos.

- Tudo bem? - questionou ele novamente, preocupado com a feição boquiaberta da produtora.

O natural seria um 'tudo bem, estou ótima'. Mas foram palavras que não saíram da boca dela. Nunca saíram antes, o que seria diferente agora? Foram cinco vezes. Cinco. Cinco oportunidades em que esteve dessa mesma forma, frente a frente com Ricardo. Olhos vidrados, as mãos suando, um calor, engolindo seco e uma vontade incontrolável de chorar, correr, gritar e pular ao mesmo tempo. Era ele. Era, realmente, ele. O cara do pôster. 

O cara do pôster - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora