IV - O CARA

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No camarim todos se entreolharam sem entender muito bem o que tinha acabado de acontecer. Ricardo deu de ombros assim que Karen saiu da sala, abriu o case da guitarra e começou a afinar as cordas. Há algum tempo ninguém mencionava a Mistic Feelings em sua presença. Os caras da banda sabiam que ele não gostava nada de ter notícias de um passado que não foi muito dos agradáveis. Até porque, lembrar da Mistic era lembrar que a banda tinha sido reativada pelos antigos membros e ele não estava entre os músicos. Apesar dos direitos autorais, que continuavam a cair em sua conta poupança, não queria mais nada deles. A briga com Lucas tinha sido feia e apesar da amizade de infância, ele sabia que nada mais seria como antes.

- Parece que alguém ainda te reconhece como um Mistic - provocou David, sabendo que a pergunta poderia acarretar uma reação não muito amistosa no colega de banda.

- É. Acho que não fui tão substituível assim, como disseram.

- Você é o cara. O Lucas é que é idiota. As melhores músicas são suas, se não fosse assim, por que teriam relançado em 2019 um EP de 2004? Os caras não compõe nada desde que você saiu.

- Bom, eu também não componho nada desde então. Se eles são ruins, não posso me gabar também.

🎸

Ricardo montou a Mistic seis meses depois de ter ingressado nas aulas de guitarra. O melhor amigo de escola, Lucas, também estava aprendendo violão e gostava de cantar. Eles tinham apenas 11 anos e preferiam a música aos quadrinhos, futebol, carros ou meninas. Dividiram a mesada para comprar o Black Album do Metallica, que acabara de ser lançado, e ouviam quase todos os dias aquelas 12 canções, pensando como seria legal tocar para uma multidão.

Convidaram mais alguns colegas de classe e logo já estavam ensurdecendo a vizinhança da pequena cidade em Minas Gerais, com pouco menos de 80 mil habitantes na época. Logo, já tocavam nas festinhas do colégio, nos aniversários e, repentinamente, estavam famosos entre a turma da mesma idade. Pararam de cortar os cabelos e os cincos rapazes cabeludos, com camisetas pretas já eram reconhecidos em meio aos pequenos fãs de Menudo.

Começaram com os covers e não demorou muito para ensaiarem as primeiras improvisações. Ricardo gostava de inventar solos longos e Lucas queria cantar letras que "combinassem com ele", como gostava de dizer. A primeira música autoral surgiu sete anos depois do primeiro ensaio. Nos shows, alguns colegas já pediam 'Believe', a primeira música, e todos cantavam em coro.

Com cinco músicas prontas, gravaram uma pequena fita K7 e mostraram para um amigo, que trabalhava na rádio. Ele torceu o nariz e disse que parecia 'música de duende'. A inspiração realmente vinha de um mundo místico. Afinal, eram jovens, todos fãs de 'Senhor dos Anéis' e jogadores de RPG. Não seria absurdo gostar de música medieval, tendo um contexto como este.

- Mistic feelings... - explicou Lucas, quando o amigo radialista quis saber do que se tratavam aquelas letras e aquela melodia tão peculiar.

- Mistic feelings...ok. E o nome da banda? - questionou o radialista, que procurava um motivo para colocar uma das músicas para tocar, mas, de preferência, depois da meia noite.

Lucas, Ricardo e os demais integrantes nunca haviam concordado sobre um nome. Passaram dias debatendo, fazendo listas, pedindo opiniões e nunca havia um consenso. Já naquela época era possível perceber que consenso não era o forte do grupo.

- Mistic Feelings - interferiu Ricardo.

- Como?

- Mistic Feelings, o nome da banda - respondeu o guitarrista, olhando para o rosto incrédulo do vocalista.

- Como você decide sozinho o nome da banda e não pergunta pra gente, cara?

- Eu não decidi nada sozinho, foi você que falou.

- Eu falei sobre o estilo, a pegada, o sentimento da banda. Não o nome! O que os caras vão pensar? Eles nem estavam aqui!

- A banda é nossa Lucas, eu e você que começamos a porra toda. Eles vieram depois, a gente decide, eles participam. Você sugeriu, eu achei legal e o radialista gostou. Você viu?

Não havia argumento e nem como voltar atrás. Naquele mesmo dia a Mistic Feelings ecoava nas ondas da rádio municipal. E a repercussão veio logo na sequência.

- Convidaram a gente pra gravar um disco, com gravadora e tudo, o Bento Toledo me ligou! - revelou Lucas no ensaio um ano depois, comemorando a ligação de um dos maiores produtores de heavy metal do Brasil.

Todos estavam fazendo faculdade e procurando uma profissão, enquanto batalhavam para conseguir viver um sonho tão impossível para os músicos no Brasil: o sucesso. Ainda mais impossível para músicos de heavy metal.

A primeira viagem para São Paulo foi no mês seguinte, levaram uma nova demo com dez faixas, todas inéditas e uma proposta bem ousada. Queriam violinos, teclado, voz feminina, voz masculina, coral e uma infinidade de sons peculiares. Toledo ouviu a demanda e colocou uma meta: - vamos gravar e investir, mas queremos resultado. Vocês tem que vender... vender disco, camiseta, pulseirinha, pôster e tudo mais.

Lucas torceu o nariz. Quando ingressou na faculdade de sociologia havia decidido que viveria somente com o necessário, vendeu os instrumentos que não usava e frequentemente chamava os rapazes da banda de 'capitalistas'. Mas, mais uma vez, sem consenso, venceu a maioria.

- Vamos vender bonequinhos, então! - disse Ricardo empolgado, já pensando na fama e, principalmente, na possibilidade de viver de música. Estava noivo e já pensava no casamento e em ter filhos. O sonho de viver de música precisava se concretizar e logo.

O primeiro álbum foi um sucesso. Na Expo Music dividiram o palco com o Angra e já davam os primeiros autógrafos ao andar pelos corredores da feira de música. A notícia bombástica veio no mesmo ano, foram selecionados para tocar no maior festival de heavy metal do mundo, na Alemanha. Toledo percebeu que os rapazes eram a bola da vez e emendou uma turnê europeia. Seis meses viajando e divulgando o debut.

🎸

- Eu vou voltar para casa.

- O quê? Como assim você vai voltar pra casa, Lucas? - questionou Ricardo incrédulo.

- Não quero mais, bro. Estou cansado. É muito corre, muita pilha. Estou com saudade de casa, de fazer meus mantras, da natureza. Isso aqui tá pesado demais pra mim.

- Pesado demais pra você? Cara, minha mulher tá grávida. Eu estou aqui viajando, fazendo os mesmos corres, porque eu acredito. E você vai embora?

- Eu vou - estava irredutível. Lucas fez as malas e abandonou a turnê europeia, faltando uma dúzia de shows para completar o contrato.

- Isso é falta de responsabilidade, a gente precisa de outro vocal - sentenciou Ricardo.

Os rapazes se entreolharam e, novamente, sem consenso:

- Sem o Lucas não tem banda - disseram os outros três.

Vencido pela maioria, Ricardo ainda tentou apresentar algumas opções. Fez testes para novos vocalistas, se uniu a Toledo para tentar dissuadi-los, mas não tinha como. A Mistic Feelings tinha acabado em agosto de 2010. Pensou na filha pequena, na esposa e em como seria dali em diante. Convidou alguns conhecidos e montou uma nova banda, para tocar as composições que havia feito para o grupo recém-encerrado, para tentar aproveitar o sucesso e não sair de cena. Tentou ficar com o nome da banda, mas juridicamente não conseguiu.

O máximo que obteve nessa vendeta foi se apaixonar pelo universo jurídico, teve que estudar leis de direito autoral, direito de uso de imagem e pareceu natural ingressar na faculdade de Direito. Afinal, as aulas de Música não agregavam muito e o salário não estava ajudando para conseguir pagar as contas.

O cara do pôster - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora