IX - O DIA DEPOIS

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Tinha se passado quase uma hora de viagem e durante todo o trajeto Ricardo não disse uma palavra. Os caras falavam incessantemente, sobre o show, sobre música, sobre filmes, bebidas e, claro, mulheres. David não cansava de se gabar e contar detalhes sórdidos da noite de amor com Juliana. Ricardo sentia como se não estivesse ali. Ouviu os gracejos dos rapazes e não esboçou reação, o que já deixava claro que ele não queria falar sobre o assunto. Marcelo chegou a fazer algum comentário sobre o decote de Karen e Ricardo olhou-o com repreensão. O recado estava dado. O assunto ali era proibido.

Ricardo já havia pensado no que dizer a Gabi, não era a desculpa perfeita e muito menos a verdade. Havia escolhido o caminho mais fácil e agora precisava trilhá-lo. Foram 14 horas sem entrar em contato, nunca tinha ficado tanto tempo sem falar com ela desde que tinham se conhecido. Ele nem ao menos tinha visualizado as mensagens. Isso poderia significar que ele a estava ignorando, não que não estivesse, mas não queria problematizar. Era por volta de uma e meia da tarde e Alex parou em um posto para que todos fossem ao banheiro. Ricardo esperava por essa parada, pois não iria responder a Gabi por mensagens, precisava telefonar.

- Vou ali ligar para a patroa. Se quiserem ir comer algo, acho que vou demorar um pouco aqui - disse saindo de perto dos colegas.

Sentou-se em um banco na frente do restaurante do posto. Respirou fundo e completou a ligação. O celular não chegou a dar três toques quando Gabi atendeu aflita.

- Alô – falou com uma voz seca, deixando claro que aquela não seria uma conversa amigável.

- Oi amor. Tudo bem?

Foram mais de trinta minutos de conversa. De dentro do restaurante os amigos da banda viam Ricardo gesticular com as mãos e alternar entre uma feição triste e preocupada.

- O cara tá fodido - reagiu Marcelo, dando risada.

- Eu achei sacanagem o que ele fez com a Gabi, ela é gente boa. Não merecia. – contrariou Luiz.

- Eu vivi pra ver o Ricardo ser infiel, não esperava isso dele, mas vou te contar que fiquei feliz. Acho que nunca na vida ele fez algo por impulso. Achei que ele estava feliz de verdade, se ele estava feliz que se dane – completou David, o único solteiro da banda e que vivia tentando fazer todos os amigos seguirem sua rotina maluca de conquistas e luxúria.

- Será que ele está contando pra ela? Contar por telefone é complicado, hein? – disse Marcelo.

- Não sei, mas a cara dele não está das melhores. É bom a gente comer bem devagar e ficar de boa, vai dar tempo de fumar uns dois maços de cigarro até pegarmos a estrada de novo - completou Alex.

🎸🎸🎸

- Tá... Tá bom. A gente conversa quando chegar. Temos mais umas três horas de viagem. Tá. Tudo bem. Não, não liguei para a Carol ainda. Ela foi aí? Tá. Vou ligar para ela. Logo mais estou aí. Até daqui a pouco. Te amo.

Apertou o botão vermelho desligando a chamada e respirou fundo. Não teve coragem de contar a verdade, ao mesmo tempo que sabia que ela tinha sacado alguma coisa. A história que contou era muito mirabolante e ela tinha percebido que algo não estava batendo. Procurou na agenda o telefone da ex e discou.

- Oi Mariana. A Carol está aí? Chama pra mim. Oi filha, tudo bem? Papai estava fora da cidade, fui fazer um show. Logo mais estou aí. O quê? Tudo bem, lá para umas seis horas eu te pego e vamos tomar sorvete. Veja com sua mãe se posso te pegar às seis, está bem? Tá. Beijo. Papai te ama.

Desligou e os rapazes já apontavam na porta do restaurante. Estava sem fome. O estômago dava voltas e voltas, uma mistura dos excessos da noite anterior e o nervoso dos últimos minutos.

- Vamos? – convidou Marcelo, que trazia uma lata de Coca Cola na mão e deu na mão de Ricardo – Achei que ia precisar.

Entraram no carro e seguiram viagem.

🎸🎸🎸

Karen deixou Juliana em casa e dirigiu por uns 30 minutos, sem destino. Andou pelas ruas da cidade, observando os detalhes das ruas vazias, coisa típica de um domingo em cidade do interior. Enquanto mudava uma marcha ou outra, revivia flashes da noite anterior. No carro, ouvia 'Lost in Love' do 'Alvin Lee & Ten Years After', se deleitando com os solos de guitarra, imaginando ele executando aquelas notas. Estava ali, sem estar. Estacionou o carro na garagem, entrou e tomou um copo d'água. Pensou em tomar um banho, mas hesitou. 'Ainda tem o suor dele em mim, acho que queria ter essa sensação por algumas horas.' Pegou o notebook, se sentou na sala e fez o que qualquer adolescente faria ao voltar de uma balada: 'stalkear' o rapaz que havia acabado de conhecer.

Há pelo menos cinco anos não procurava nada sobre Ricardo na internet. Na época em que se auto-declarava fã número um, sabia tudo sobre sua vida. A altura, o peso, o comprimento dos cabelos, o lugar de cada tatuagem, o nome da mãe, da vó, da esposa, da filha, onde morava e uma infinidade de informações compartilhadas na internet em fóruns de discussão ou colhidas em entrevistas para revistas especializadas em heavy metal ou guitarra. Uma vez, quando era muito amiga do editor da Guitar Player, chegou a pedir para que ele fizesse perguntas específicas só para saciar a curiosidade juvenil. Óbvio que não haviam sido publicadas, mas foram respondidas e encaminhadas para ela pelo amigo. Nenhum leitor iria se interessar em saber que o passatempo favorito do guitarrista da Mistic era comer churrasco tomando cerveja.

Duas horas depois já havia devorado todos os artigos das duas primeiras páginas de pesquisa do Google. A filha dele já tinha nove anos e estava linda, tinha o cabelo loiro da mãe, mas os olhos estreitos do pai. Nas entrevistas descobriu que a relação com os integrantes da antiga banda não era das melhores e que nunca mais tinham composto nenhuma música. Fez questão de acessar o Ecadnet, olhar os registros e viu que em seu nome constavam apenas as canções antigas, nada de novo. Para um blog de sua cidade natal, ele tinha contado que não queria mais fama, mas ainda gostava de tocar e por isso começara uma banda cover com alguns colegas, para se divertir no fim de semana, para relaxar depois das audiências e da correria da vida de advogado.

- Então ele se formou em Direito mesmo. Não imaginava que isso iria dar certo - falou sozinha olhando para a tela do computador. Na última entrevista que havia lido, ele dizia que tinha ingressado na faculdade.

Tentou resistir por um algum tempo, mas foi inútil. Entrou na rede social e procurou seu perfil. Ao encontrar, pensou milhares de vezes em adicioná-lo como amigo.

- O que ele iria pensar? Essa louca me perseguindo! Ele nem chegou em casa e eu já estou adicionando na rede social? Melhor não.

Observou as fotos que estavam no modo público, viu as postagens e gostaria de não ter visto aquela. Uma publicação de 12 de junho, com apenas algumas palavras e uma foto em preto e branco. A declaração de amor era sucinta, mas delicada. Na foto, uma moça morena sorria abraçada a ele. Realmente, não precisava ter visto aquilo. Fechou o notebook esboçando um pouco de raiva adolescente, quase um ciúmes irracional.

Levantou-se, esticou os braços, foi até a cozinha, abriu a geladeira e viu as garrafas de cerveja de Gabriel. Ele tinha ido embora e deixado tudo ali. Tudo mesmo: as cervejas, roupas, CD's, documentos e tudo o mais. Sabia que ele estava na casa dos pais e que, em algum momento, teria que haver a hora da partilha. Pegou um chocolate e bebeu um copo d'água. Era preciso tomar um banho, estava quente e o suor escorria por seu pescoço.

Tomou um banho demorado, deixando a água escorrer pelo corpo, levando embora qualquer vestígio da noite anterior. Depois disso, "não haveriam provas", pensou. Se enxugou e antes que pudesse se vestir ouviu o celular tocando. Correu imediatamente para atender, mas no meio do caminho se lembrou que não poderia ser ele. Não tiveram tempo nem para trocar telefones. Ao olhar a tela viu a foto de Gabriel. Refletiu alguns instantes se pegava ou não, se atendia ou não. Não queria falar com ele, não naquele momento. Mas precisava resolver aquela situação.

🎸🎸🎸⭐

Gente! Acho que essa música do Alvin Lee tem tudo a ver com esse casal lindo. 

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O cara do pôster - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora