você está bem com isso tudo?

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O tédio me encanta. Li filosofia, sobre a comercialização e democratização da arte. Minha irmã finge que me escuta falar de Friederich Nietzsche e os papos religiosos, mas eu sei que ela não escuta. Diz estar ocupada, escrevendo no caderno sem parar, com um olho no livro e outro na escrita. Eu explico ainda que preciso de um celular, talvez, para utilizar as coisas. Mas o dela é tão desatualizado que nem aplicativos novos mais comporta.

Obrigado, Apple, por simplesmente foder com seus modelos antigos nessa burrice capitalista de nos forçar adquirir essa porcaria nova de vocês. Mas nunca será suficiente. Assim que compramos os novos, outros são lançados e, num piscar de olhos, o que tenho em mãos torna-se demasiadamente ultrapassado. Parabéns, filhos da puta. Eu odeio vocês.

Desculpe, tenho lido sociologia e filosofia ultimamente e isso acaba por tornar-me num ser humano um tanto revoltado com o cenário mundial. E isso quer dizer que cuidar do papai me deixa com tédio, já que agora não tenho mais meu celular. Há quatro dias atrás saí para tentar achar o maluco da bike, mas não faço a mínima ideia do rosto dele e sua fisionomia é um borrão na minha cabeça. Que ótimo.

Eu já aceitei isso. Tudo que preciso é de um celular, mas meus pais só têm celulares antigo que nem touchscreen tem. Ainda existem celulares do tipo? O do papai tá todo fudido, já que estava com ele quando aconteceu o acidente. Mamãe usa o dela para alarmes, mas acabou deixando com meu pai para caso precisarmos de algo. E se precisarmos, vamos ligar para quem, se ela está sem celular? Sinceramente, eu não sei se foi a pancada no poste que tomei, mas desde então eu não estou vendo sentido em mais nada. Sério.

Como estou procrastinando... Estou ansioso para voltar. Ten deve estar preocupado, não sei. Eu não falei com ele desde aquele "tô ocupado" seco dele. Não sei se é porque sou das antigas e mensagens de texto não me animam nem um pouco, ou ele foi realmente seco quando me respondeu. E eu não ligo para isso, porque Ten sempre faz o que quer, e às vezes nem dá importância ao outro. É por isso que desde o início falei do seu ego. Ego, ego, ego. Estou apaixonado por ele ou pelo seu ego? Uma boa pergunta.

Os dias passam, as roupas são lavadas, eu durmo e acordo, como e cago, leio e me canso, as feridas do papai vão cicatrizando e enfim voltamos ao médico para retirar um dos gessos dele. Sendo assim, ele está melhor. Programo os remédios no celular de beep beep da mamãe — como ela mesma diz —, arrumo minhas coisas e agradeço por tudo que me fizeram. Minha irmã diz que é para eu me cuidar, mas acho que ela apenas está tentando ser uma boa irmã. Ela nunca mais foi próxima de mim, mas eu também não quero forçar nada. Somos adultos agora, cada um faz o que quer e arca com as consequências.

Mamãe me aperta forte quando vai se despedir e meu pai me olha por todo o tempo, para enfim dizer:

— Não faça besteira, pare de fumar, volte com o cabelo preto, não coma porcaria, não fique em casa sem fazer nada, junte dinheiro, compre um carro — seus avisos parecem até uma musiquinha infantil.

— Tá bom, então — balanço a cabeça. Jesus, nem parece que vou me livrar dessa monotonia!

Me despeço de todo mundo, me jogo no ônibus, desejo mais melhoras ao pai e aceno antes de motorista dar partida. Leio um pouco de Agatha Christie no meio do caminho, mas do nada acordo com um gosto azedo na boca e olhos sensíveis, já em Seul. Pego minhas coisas, me mando e vou para casa. Estou cansado, com sono e fome. Provavelmente estamos no início da noite e seria interessante avisar aos meus amigos que já estou por aqui.

Não tenho dinheiro para um celular grande e coisas mais, então me vejo numa dessas lojinhas de eletrônicos comprando uma porcariazinha da China que só faz chamada e grita para acordar. Barato que dá dó, mas não tenho muitas escolhas agora. Então chego em casa, sinto o cheirinho invadir minhas narinas e sorrio feliz por estar no meu cafofo bagunçado cheio de nicotina e perfume barato no ar.

Salvo o número de Doyoung e Ten no celular vagabundo, cheio de botões. Como não tenho o de Yuta na cabeça, eu certamente pedirei ao Doyoung. Enquanto isso, ponho água de café no fogo e disco o número do Kim para anunciar minha chegada.

— Alô? — ele atende.

— Kim Domônio? — brinco, daí escuto sua risada ao reconhecer minha voz.

— Seu puto, você está sumido há mais de uma semana — reclama ele.

— Eu sei, desculpe.

— Que número é esse?

— Meio que meu celular foi conhecer Poseidon — rio com minha própria piada. — E aí, como as coisas estão?

— Estão indo, né — diz. — E você?

— Estão bem. Estava morrendo de tédio, então espero voltar ao restaurante logo e voltar às atividades — encosto-me na pia e respiro fundo.

— Ah, em falar nisso... Você está bem com isso tudo? — essa pergunta me faz ficar alguns segundos olhando para a sala, tentando entender.

— Com o quê?

— Com o Ten, pô. E a viagem dele...

— Ah, sim... Claro, né. Ele já deve ter voltado já, vou falar com ele mais tarde. Quero que me conte sobre a China e tudo mais — engulo em seco, apertando o celular contra a orelha.

— China? Ué, tô falando da China não, maluco — o que Dodo diz me preocupa.

— Se não for da China, vai ser do quê? — ele deve ter se enganado, pois Ten não mencionou zorra nenhuma comigo.

— Amado? — Doyoung e seu dialeto hétero. — Taeyong, você está brincando, né?

— Brincando? — repito, percebendo que o assunto é um pouco sério e que talvez ele não esteja louco. — Tá, Doyoung, do que você está falando?

— A viagem, caramba.

— Que viagem, porra?

— A viagem de Ten.

— À China?

— Não. A viagem de Ten à Itália. 

café et cigarettes༶✎༶tae•tenOnde histórias criam vida. Descubra agora