Quatro - A pequena intempérie

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Entre um passo e outro, Sales não desviava o olhar do dela. Qualquer pessoa se sentiria cortejada ao ser fitada com tanta profundidade, mas algo naqueles olhos caramelos deixava Karen inquieta.

− Está calada − ele comentou, inclinando a cabeça sobre os ombros da moça, no que suas orelhas se esbarraram de leve e ela pôde sentir o toque quente da sua pele.

− Tenho pensado muito − confessou e imediatamente o sentiu soltar o peso da respiração em seu pescoço, como se estivesse prestes a ouvir palavras que gostaria de evitar. O calor entre eles estava ainda mais inebriante, de modo que ela precisara esforçar-se para manter a concentração. − Nessa coisa toda... sobre nós... sobre não termos escolha.

− Não venha me dizer que não está ansiosa por isso − sussurrou com ironia, sem se preocupar em disfarçar a arrogância de quem sabia que era desejado. Ainda assim, continuava executando movimentos perfeitos. Aparentemente, Karen não era a única naquele salão a quem fora ensinado como controlar suas emoções.

− O... o quê? − perguntou, subitamente constrangida. − Se é essa a impressão que tem a meu respeito...

− Poupe meus ouvidos − interrompeu-a, indiferente. − Não pense que não sei o que você e seu irmão estão fazendo. Não finja que não se aproveitam da fraqueza que meu pai tem pelo seu. − Sua voz estava calma, quase doce, como se o comentário que fazia fosse uma coisa tão clara, que não devesse surpreendê-la.

Ao som dessa acusação infundada, porém, Karen perdeu totalmente o compasso. Tentou afastar-se dele, mas sentiu que sua mão a pressionava ainda mais contra o corpo. 

A expressão de seu rosto era tranquila, totalmente indecifrável, e ela não conseguia acreditar que alguém pudesse ser tão dissimulado.

− Nossa música ainda não acabou − comentou, em tom de desagrado. Ela olhou em volta e percebeu que outros casais se juntaram a eles. − Devo supor que irá me tratar com tão pouca elegância quando se tornar minha esposa?

− Se − Karen respondeu, firme.

 Recuperando a compostura, se esforçava ao máximo para não demonstrar fraqueza. 

Se eu me tornar sua esposa, o que não pretendo, manterei a elegância que aprendi com minha mãe.

Franzindo o cenho, Sales não conseguiu encobrir a surpresa. 

Pela primeira vez naquela noite (ou em toda sua vida), ele parecia finalmente ter se dado conta que alguém, talvez, não quisesse pertencer a ele. 

Ele pretendia ferir os sentimentos da jovem princesa, mas aquilo que tinha acabado de ouvir soara completamente diferente do som que se espera escutar quando um coração se parte. Na verdade, parecia-se muito mais com um genuíno desprezo.

O príncipe reparou nela pela centésima vez desde que desceu a escadaria, exalando confiança. Seus cabelos negros caíam em cascata sobre os ombros, emoldurando o rosto perfeito, levemente bronzeado. 

Seus traços finos e corpo magro salientavam o contraste entre os dois, mas ele não podia evitar admitir que ela era muito bonita. Bonita como o tipo de menina que ele costumava ter aos seus pés (e dispensar com frequência). 

Não. Pensando bem, Karen era ainda mais, o que não dava a ela o direito de tirar proveito disso. 

Ele sabia que aquele tipo de beleza geralmente estava acompanhada da certeza de conseguir conquistá-lo com facilidade. Entretanto, ela ainda insistia em fingir que não se importava com ele.

Por um momento, Sales chegou a pensar que Karen não seria capaz de interpretar aquela indiferença que estava tão empenhada em demonstrar. Ela parecia sincera. Ainda assim, não tinha o menor dos motivos para confiar nela.

À lembrança de sua mãe, a princesa se pegou pensando em como tudo aquilo poderia ser diferente, caso ela estivesse viva. 

Dificilmente a rainha Zélia permitiria que passasse por uma situação como aquela. E por mais determinado que o irmão fosse, ela se recusava a acreditar que ele iria contra a vontade da mãe quando o assunto era família. 

Seu coração começara a pesar dentro do peito, mas em um passe de mágica, antes que as lágrimas extravasassem por seus olhos, aquela música aparentemente eterna, finalmente chegou ao fim. 

Sales tomou-a mecanicamente pelo braço e entregou-a ao rei Kilian, com quem trocou de parceira.

− O que foi? − o irmão perguntou, percebendo imediatamente que algo não corria bem com ela.

Ao ouvir sua voz familiar, a moça deixou escapar uma lágrima que o fez se mexer nervosamente à espera de uma nova cena de pirraça. 

Como nenhuma palavra saiu de sua boca, e lágrima alguma veio depois daquela, Kilian apenas estendeu a mão para secá-la e, aproximando-se de seu rosto, sussurrou "biblioteca".

 Com isso, ela entendeu que deveriam, primeiro, terminar aquela valsa, mas que em breve teriam uma nova conversa. A princesa consentiu com a cabeça, secretamente grata por aquela nova oportunidade de desabafar.

Do outro lado do salão, Dom Fernão observava as expressões com cautela. Os olhos vagavam do filho, que dançava despretensiosamente com a jovem Sofia, para a futura nora que, com o rosto angustiado, sussurrava ao ouvido do irmão.

Colocando, distraidamente, sua taça de champanhe sobre a bandeja que um criado carregava, ele dirigiu-se para o centro da sala, onde todos dançavam, para não deixar escapar de seus olhos o que quer que acontecesse dentro das suntuosas paredes.

Dom Fernão tinha um amigo que salvara sua vida e uma promessa a cumprir como dívida. Ele sempre cumpria suas promessas. Por mais que Kilian estivesse se saindo bem como rei ao longo desses dois anos, o Imperador não tinha certeza que aquele jovem teria culhões para fazer o que era certo.

Quando a música enfim acabou, viu o Rei Kilian tomar a irmã pelo braço e, sem dar satisfação alguma, retirar-se para a biblioteca. Decidiu segui-los e conseguiu alcançá-los antes que entrassem no recinto.

Kilian olhou-o de soslaio, irritado com aquela invasão de privacidade, mas o homem não pareceu importar-se. Dirigiu-se diretamente à princesa, sem fazer qualquer cerimônia e sem rodeios.

− Minha querida, não pude deixar de notar sua angústia. Pode me dizer o que está acontecendo?

Karen virou-se para o irmão, com o olhar de pânico e suplicou, ali mesmo, na frente do imperador:

− Meu irmão, ele é horrível! Não faça com que eu me case com ele! Eu imploro!

Kilian abriu a boca para falar alguma coisa, mas antes que tivesse tempo, uma voz veio do corredor, de onde Sales e Roque surgiram juntos, sem parecerem se importar por não terem sido requisitados.

− Ótimo. Não posso me casar com alguém que mude de opinião tão depressa.

− Cale-se, Sales! − o pai se exaltou, perdendo o controle que tanto procurara manter. − Você não tem voz ativa aqui.

Para a surpresa de Karen, o rapaz baixou os olhos e obedeceu ao pai. 

Simplesmente assim: o futuro soberano do Novo Mundo calou-se diante daquela alegação absurda de que não tinha direito de opinar sobre sua própria vida. 

A princesa estava prestes a criticá-lo mentalmente, quando lhe ocorreu a ideia de que, se Kilian a repreendesse em público, ela provavelmente teria a mesma reação.

− Vamos nos sentar, por favor − pediu Kilian, apontando na direção da biblioteca. − Esse não é um assunto para se tratar em um corredor.


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O Filho do ImperadorOnde histórias criam vida. Descubra agora