Café da Manhã

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Estou quase finalizando a resenha do livro quando ouço um barulho de fervilhar vindo da cozinha, levanto e corro até a panela com café transbordando e desligo o mais rápido que posso, mas não consigo evitar nada e ainda me queimo de leve com um pouco do líquido que caiu na minha mão. Ótimo, nada como uma boa queimadura para me manter acordado. Ironicamente ao repassar esse pensamento eu percebo que é verdade. Ainda tenho sete trabalhos para terminar, todos já foram iniciados anteontem, fiquei desde sexta tentando colocar as atividades em dia, mas o cansaço só me deixou duas escolhas: dormir na sexta e tentar terminar todos os nove trabalhos em uma noite ou passar a noite de sexta para sábado fazendo os trabalhos e terminar na noite de sábado para domingo. Escolhi a segunda opção e me arrependo até agora, embora saiba que fiz a escolha correta, ou não, se eu não tivesse deixado acumular eu dormiria seis horas por noite, mas pelo menos dormiria.

Pego fones e coloco uma aula em áudio para ouvir enquanto termino de preparar algo para comer, ainda são dez horas da noite, se eu me apressar eu posso dormir um pouco, eu acho, todos os trabalhos estão pela metade. Enquanto escuto a mulher falando sobre alguma coisa de biologia eu percebo que não vai dar certo e tiro os fones e vou coar o café e pensar em como terminar isso mais rápido. Enquanto coo o café, começo a perceber que minhas mãos tremem e que minha respiração está ficando mais acelerada; percebo o que vai acontecer e vou beber água antes que se instale totalmente, agora não é hora. Não agora.

Termino de coar o café, pego uma xícara e uns pães com manteiga e vou para o quarto me sentar enquanto assisto a um vídeo aleatório no Youtube, é minha distração, mas não dura o bastante. Dez minutos depois de comer já volto a escrever e escrever mais ainda, minhas mãos estão doendo, o dia inteiro foi cansativo, tive que preparar os lanches hoje, meu irmão está doente então minha carga dobrou mais ainda. Um freguês tentou me expulsar pensando que era um drogado quando cheguei para trabalhar, eu deveria me sentir ofendido, mas estava cansado demais para falar qualquer coisa e só entrei, mais tarde naquele mesmo dia pude o ouvir comentando com outro empregado dele:

― Esse moleque ali que trabalha na cozinha, hoje chegou aqui com uma cara daquelas, aposto que bebeu muito ontem à noite, ou virou a noite jogando, aposto ― ele mordeu o pão que eu havia preparado e bebericou o café, ― esses jovens de hoje em dia são uma merda mesmo, parece que a década da moleza chegou, afinal ― ele finaliza enquanto mastiga o pão.

Minha mãe ouviu o que ele disse também, ele pediu mais um misto, eu preparei e entreguei-o a ela, seus olhos estão enfurecidos, eu podia sentir, era um daqueles momentos em que a moralidade parece ser ofuscada pela realidade. Ela gostaria de fazer algo, mas aquele homem era o chefe da empresa cujos funcionários eram nossa única clientela, seria suicídio fazer algo a respeito. Não é como se fosse a primeira vez, ele já tinha xingado minha cor várias vezes, mas um comentário realmente ficou na minha cabeça, foi logo na primeira vez que ele chegou aqui, ele sentou na cadeira e infelizmente o ouvir comentar com um de seus empregados:

― Finalmente um criolo no emprego certo, é a habilidade deles e o mundo seria mais fácil se eles simplesmente aceitassem. Preto não foi feito para status, pelo menos aqui não, talvez lá de onde eles vieram e mesmo assim tenho um pé atrás a respeito. Espero que ele use aquele cabelo preso, que coisa horrenda, aposto que acumula mais sujeira que uma esponja velha.

Foi um dia tenso, eu particularmente gostaria de dizer que não me incomodei tanto. Sinceramente a parte mais terrível daquele dia, foi o fato de que na mesa ao lado, um funcionário dele, um homem negro e forte estava comendo, ele estava tremendo de raiva, eu podia quase sentir faíscas saindo pelos seus olhos. Ele me encarou, ele fechou os olhos levemente e fez uma breve reverência, ele também sabia que nada poderia ser feito, aquele homem não mudaria a opinião dele, nada mudaria. E por mais que eu e este outro cara fôssemos puxar briga com aquele cara, ele só teria mais certeza do que dizia, teria certeza de que não passamos disso: animais; selvagens; indigentes.

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