Capítulo 2 | Clara Coulthard

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O corpo exausto da menina repousava sobre um colchão gasto e nada confortável, e assim que recobrou a consciência sentiu seu coração palpitar.

O mais preciso movimento que se arriscou a fazer foi entregue pelo ranger da madeira velha da beliche, observou o quarto apertado, as paredes tinham manchas amarronzadas, havia apenas uma janela com o acabamento desgastado que se encontrava fechada, era noite, a outra beliche do outro lado do quarto estava vazia e os lençóis puídos alinhados. Andou de forma cautelosa até a porta, sentindo o solo gelado encontrar a planta de seus pequenos pés. A casa era antiga e o cheiro de mofo fazia as narinas de Seis arderem, que lugar estranho era aquele? Se perguntava, enquanto caminhava seguindo o som de conversas e risadas acompanhadas da lenha queimando calmamente, vinha do único cômodo com a luz acesa.

Quando atravessou a porta, se viu entre muitas meninas de diferentes idades, uma senhora de cabelos brancos presos e incontáveis rugas no rosto pardo, caminhou até ela e a cumprimentou, depois lhe ofereceu comida e lhe levou para perto do fogo onde as outras meninas também comiam.

De início, a comunicação era a parte mais difícil para a mais nova Clara. As pessoas falavam rápido demais e seu vocabulário era muito limitado, as meninas que dividiam quarto com ela achavam que a loira fosse muda, tentavam se comunicar e até inclui-la nas brincadeiras, mas ela se encolhia e negava todas as vezes. Estava com saudade dos outros, e se sentia deslocada quando conversava com as meninas, não entendia de suas brincadeiras e a rotina se resumia a estudos e afazeres domésticos.

Recebia aulas em uma escola com estruturas tão velhas quanto as do orfanato. O conteúdo das aulas eram estupidamente fáceis, suas notas eram excelentes, mas isso não mudava o fato de ser órfã, então ninguém se aproximava dela na escola também. No primeiro mês não atendia quando a chamavam de Clara, mas aos poucos se acostumou, assim como, percebeu que para o resto do mundo ela não existia antes de receber um nome.

Passados alguns meses se esquivando de diálogos, e tentando incansavelmente não olhar nos olhos das pessoas, Clara começou a frequentar a biblioteca empoeirada e escassa do orfanato. A cada leitura entendia mais da cultura e da língua, conhecia novas palavras e se sentia acolhida pelas histórias.

Ao longo do tempo suas colegas de quarto foram sendo adotadas, e davam lugar a novas, os dias se passavam e Clara continuava na mesma cama, relendo os mesmos livros e temendo todos os dias que aquela luz se tornasse vermelha. As noites eram dolorosas, quando conseguia dormir tinha pesadelos horríveis com o corredor infindável e as paredes brancas, as vezes sonhava com a número Dois que era o mais próximo que ela tivera de uma amiga. Nos sonhos a morena chorava e se lamentava, sempre indagando o motivo dela ter tentado fugir, a culpa atormentava a menina todos os dias.

Quando percebeu que não seria adotada, começou a estudar como louca, os livros didáticos e quaisquer que obtivesse assuntos relevantes para a sociedade foram lidos e relidos incontáveis vezes, queria ter todo conhecimento que pudesse, assim seria mais fácil sobreviver sem uma família.

Dois anos depois de sua chegada ao orfanato, algumas meninas mais velhas, amarguradas por saberem que também não iriam conseguir um lar, viram em Clara a oportunidade perfeita para descontar todo o rancor que sentiam. Batiam na loira como em um saco de pancadas, e ela não reagia, não fora criada daquela forma, quando a machucavam ela aceitava e esperava por mais, como nos testes.

As meninas perceberam a relutância da menina em relação a encarar os olhos das outras. Certa vez, a amarraram e puseram um espelho em sua frente, deixaram ela trancada no quarto por um dia inteiro encarando a si mesma, só não sabiam que ao olhar para seus próprios olhos, a menina revivia inúmeros momentos repetidamente em um looping infinto. Sua vida até ali não tinha boas lembranças, Clara não tinha uma existência que trouxesse boas memórias.

Não Olhe Em Seus OlhosOnde histórias criam vida. Descubra agora