Se tu és sopro de vida, amar-te-ei em um suspiro. Amar-te-ei tão pesarosamente que me verás em uma rotineira tortura ácida. E a dor se entrelaça profundamente, tão fortemente, que se transmuta em amor. Perderias essa dor em benefício de uma obscura paz que adormece a alma da terra? Quão vazio seria? Ou, então, vereias-te na seguinte postura: a de abraçar o caos na terra do qual foram feitas as coisas belas nesse coração teu? Quantas cores seriam indevidas, desvistas, se teus espinhos não perfurassem minha têmpora tão cruelmente, tão rigorosamente?
Deus. Oh, Pai. Clamei-o difusamente em um timbre fraco e abandonado, ainda que fosse nítida a angústia e a perdição da humanidade. Sim, angústia. Aos teus olhos velados pareço-te inalcançável. Tão indistinguível. Tão distante. Como poderias me ver à parte de ti se faço meu lar sob tua carne e sangue? Abaixo desta morada decrépita que ameaça queda sobre a pureza de meu espírito que aqui se submete. Como te podes alegar tão mal tua segurança quando meus gemidos densos, cruciantes, sustentam a essência em teus ossos?
Quantos dias desta ínfima e efêmera vida tua seriam razoáveis para não temeres - e te digo: não temas - erguer-te a ti mesmo, das cinzas e do pó, para o alcance da mão que paira ensanguentada e dolorida. Agora, não te soltas. Não te afastes. Enterneças-te o corpo frio com o reminiscente suplício e recubras-te do tecido de minha pele, a qual afugenta o frio dilacerante da angústia. Tomo de ti a morte eterna, pois tu és de essência rígida e bruta. Não mais imerso sob águas escuras. Sufocado pela neblina ou esquecido sob terra. Nunca só. Não perdido. Nunca. Jamais.
* Enternecer - comover
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Kalopsia
PuisiKa•lop•sia (grego) - desilusão das coisas serem mais belas do que realmente são. Uma obra destinada à prosa poética que espelha a realidade vivida pela autora. "Kalopsia" é uma coleção de memórias pessoais traduzidas para a linguagem de um texto lit...