— Alô? Mãe?
— Ué, meu filho, onde é que você se meteu? Já estava ficando preocupada. Não atende mais celular, é?
— Mãe... eu tô preso, tô em cana, inteirinho atrás das grades.
— O quê, seu filho-da-puta? Preso?
— Mãe, você é minha mãe. Não me xinga disso.
— Mas que merda você aprontou?
— Eu só tava lendo um livro no parque aí em frente de casa. Aí a polícia veio e me prendeu. Disseram que não posso ficar na rua durante a quarentena. Vocês têm de pagar minha fiança.
— Mas você é um trouxa mesmo! Essa mania de livro... Por que é que você não tava fumando maconha? A essa hora você já estaria em casa. O filho da Cleonilda, aquele traficantezinho sem-vergonha, foi solto por causa da pandemia.
— Eu sei, mãe. Sou uma besta mesmo...
* * *— Aonde você pensa que vai?
— Vou me matar!
— Pelo amor de Deus, não diga uma coisa dessas. O que aconteceu?
— Meu coração! Estou me sentindo um compositor sertanejo.
— Deixa de besteira! Tudo passa.
— Não passa. Vou é sair beijando todo mundo na rua até pegar um coronga.
— Peraí!
— Não péro nada. Vou unir o útil ao desagradável: vou pregar o amor ao próximo e, se tiver sorte, logo partirei desta joça de mundo.
— Que vergonha! Tanta gente sofrendo por fome ou por doença e você com essas frescuras?
— Não é frescura.
— Você vai é contaminar o próximo.
— Ô saco...
— Não tinha pensado nisso, né?
— Não tinha. Mas... e se isso ajudar a achatar logo a porra da curva?
— Que curva?
— A de contágio.
— Pára de falar bobagem, cara!
— E se tudo for mesmo uma mentira? Serei um teste vivo.
— Mas... não é morrer que você quer?
— Ah, é... Porra, tá foda. Aquela safada...
* * *— Credo! Onde é que você vai desse jeito?
— Vou correr.
— Assim? Vestido feito um mendigo?
— É que vou correr na nova cracolândia.
— Ué! Mas por quê?
— Só cracudo pode ficar na rua. Não sabia? Vou ficar dando voltas em torno deles.
— Puts, ce tem cada uma.— Sou esperto.
— Sei. Bom, na volta, aproveita e compra pão.
— Se o padeiro estiver mendigando por lá...* * *
Meus vizinhos estão atuando numa ópera-bufa. Uma garota grita com uma voz apagada de soprano: "Fora, Bolsonaro!". E um cara, um verdadeiro tenor, devolve estrondosamente de outro apartamento: "Mito!".
* * *
Aquele momento em que um homem solteiro, de quarentena, só percebe que está há mais de dez minutos admirando uma Flor do Deserto, quando começa espontaneamente a cantarolar: "Vem cá, cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá, meu coração".* * *
— Vou à farmácia. Quer alguma coisa?— Você vai sem máscara?
— Ué, o doutor Fulano disse que só quem tá doente precisa usar.
— O doutor Sicrano disse que todo mundo tem de usar.
Coloca a máscara.
— Pronto.
— Você vai de máscara?
— Porra! É pra fazer o quê afinal?
— Não sei. O doutor Beltrano está em dúvida.
* * *Neguinho parece estar num Ramadã sem pausa noturna: com os nervos à flor da pele. Segundo Sir Richard Francis Burton, durante o Ramadã — no qual não se pode comer enquanto houver luz solar — a fome deixa todo mundo tão zureta que, como lenitivo, os homens batem nas mulheres, estas, nos filhos, e estes, nos animais. À noite, todos voltam a comer e fazem as pazes.
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Crônicas da Quarentena
UmorismoNarrativas bem-humoradas que, em meio à pandemia do coronavírus, acompanham o cotidiano dos quarentenados. (Capa: Felipe Techio.)