— Seu Roberto, eu já terminei, viu?
— Obrigado, dona Sônia. Também já transferi o dinheiro para sua conta.
— Muito obrigada mesmo. Já tava sem um tostão, a geladeira vazia. E o senhor reparou, né: além de usar máscara o tempo todo, tô sempre com meu alcogel na mão.
— Reparei, sim. Faz bem.
— Depois disso tudo não dava pra receber o dinheiro em mãos, né. No zap disseram que pode ter vírus nele.
— Sim, sim.
— Seu Roberto... sei que o senhor tá ocupado, mas queria dizer uma coisa.
— Hum.
— Por que o senhor não arruma uma companhia? Tem tanta moça boa por aí.
— Não ando "por aí", dona Sônia. Sempre trabalhei em casa, a senhora sabe.
— Por que não tenta o Tinder? Eu mesma arran...
— Deus me livre do Tinder!
— Ué, por quê?
— O Tinder é a porta do inferno!
— Credo, seu Roberto, que exagero. Tem gente boa no mundo também.
— Ah, é? Comecei a ler um livro aqui que fala sobre isso: Crime e Castigo. Já leu?
— Não, senhor.
— É a história de um cara que conhece uma garota linda no Tinder. Quando ele vai encontrá-la, percebe que a foto era falsa, que, na verdade, ela era uma velha usurária feia pra caramba. E sabe o que acontece?
— O quê?
— Ele mete um machado na cabeça dela!
— Cruz-Credo, seu Roberto! Que horror.
— Pra senhora ver o que a gente acha no Tinder...
— Mas o senhor já terminou o livro?
— Ainda não.
— Livro bom tem final feliz, seu Roberto.
— Nem sempre, dona Sônia. E se a personagem for uma usurária então...
— História, pra mim, tem que ter no final pelo menos uma esperançazinha...
— Bom, dona Sônia, agora preciso trabalhar. Tenho de entregar essa maquete digital. Se a senhora precisar de dinheiro, é só me avisar, tá? Minha casa é essa poeira só.
— Tá bom, obrigada. Fique com Deus, viu?
— Viu. Tchau, dona Sônia.
— Tchau.
Momentos depois:
— Alô? Sílvio?
— Oi, Sônia querida. Tudo bem?
— Tudo. E você?
— Trabalhando, mas posso falar.
— Ó, eu só liguei pra te dizer o seguinte: eu sou velha...
— Velha? Você não disse que tem 52 anos?
— Tenho.
— Para mim, você é uma novinha. Já te falei: tenho 65.
— Tá, mas deixa eu terminar. Olha, sei que já não sou bonita, mas não sou usuária, viu?
— Usuária?
— É, de drogas... Não ria. Tô falando sério.
— E por que eu pensaria uma coisa dessas de você?
— Sei lá... Porque a gente se conheceu no Tinder, talvez...
— Deixa de bobagem, Sônia. Quando a quarentena acabar, vou te levar num baile ótimo, pra gente dançar forró. Você tinha dito que gostava.
— E eu gosto mesmo. Danço muito bem, até demais. Sabe, né? Já te contei que fiz muita bobagem na vida...
— Então tá combinado, meu anjo. E não se preocupe: pelas conversas que já tivemos, sei que, apesar dessas suas bobagens, você tem bom coração. Eu tô longe de ser perfeito, mas, como já te falei, faço uma forcinha. Até meus filhos acham que você melhorou meu astral.
— Que bom que você está animado assim, Sílvio.
— Antes de te conhecer, eu andava meio desanimado. Mas, agora, não! Ah, e não diga que você não é bonita, viu, porque gostei muito das suas fotos.
— Elas são reais.
— Pois então! Sem preocupações bobas. A gente ainda vai ter muito tempo para tratar das coisas mais sérias.
— Obrigada, Sílvio.
— Olha, os meninos terminaram as entregas. Tenho de levar o caminhão pra empresa agora.
— Tá bom. Um beijo, Sílvio.
— Um beijo, meu anjo. Fica com Deus.
"Credo, como o seu Roberto é negativo. Coitado. Tão bom comigo mas até pra ler livro ele é pessimista..."
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Crônicas da Quarentena
HumorNarrativas bem-humoradas que, em meio à pandemia do coronavírus, acompanham o cotidiano dos quarentenados. (Capa: Felipe Techio.)