Quando chegou em casa, seu pai já havia regressado de sua última viagem. Jeifer aparentava ter quarenta anos do ponto de vista humano, mas já era um bruxo centenário, possuía uma barba fechada da cor da noite, que se juntava a seus cabelos da mesma tonalidade e desciam em ondas até os ombros.
Seu sorriso fácil iluminava qualquer ambiente que adentrasse, os pés de galinha entregando as primeiras marcas da idade. Foi com esse sorriso que o homem recebeu a filha que descia da carruagem real. No momento que viu o pai parado em frente ao lar da família, Aracena correu para abraçá-lo e, juntos, entraram na residência.
A casa de dois pavimentos era construída em madeira de pau-brasil, a coloração avermelhada destacando-a do restante da vizinhança. Havia uma lareira de pedra escura na sala de estar, que era utilizada nos dias gélidos de inverno, mas, naquela época do ano, nem mesmo a brisa da noite era suficiente para aplacar o calor.
A jovem sentou-se com os pais na varanda dos fundos, de onde era possível ver as primeiras árvores que compunham o bosque a cerca de cinquenta passos, com um grande gramado separando-o da edificação.
O pai perguntou-lhe sobre sua estadia no castelo e sobre o estado de saúde da rainha e ela contou-lhe tudo o que vivera, tendo o cuidado de omitir os detalhes acerca do jovem rei que despertara suas emoções.
- Sabe filha - disse-lhe o pai, assim que terminou seu relato, - quando eu era um pouco mais velho do que você, eu ajudei o velho rei Orísis, avô do rei Osmaris.
- É mesmo? - perguntou a moça, com o cenho franzido.
- O velho rei Gorísis era apenas um bebê ainda, quando o reino foi abalado pela peste e, como bem sabe, milhares de pessoas morreram durante o evento.
Aracena conhecia a história. Uma doença oriunda das longínquas terras do leste se espalhou pelo continente inteiro numa velocidade alarmante, deixando uma trilha gigantesca de mortos.
As pessoas apresentavam manchas negras na pele e caroços nas axilas, tendo suas vidas ceifadas em menos de uma semana.
Foi nesse cenário que sua família chamou atenção. De início, seu avô havia sido contra, pois, assim como nos outros reinos, os bruxos não eram bem vistos em Ládica, mas seu pai convencera-o a ajudar a tratar dos doentes.
Os enfermos foram isolados dos saudáveis e, graças à medicina bruxa, muitos infectados conseguiram se curar. Em menos de um ano a epidemia já estava controlada no reino e alguns dos reinos vizinhos. Infelizmente o contato constante com a gripe acabou levando a vida do avô, que mesmo debilitado ajudou a cuidar de seus pacientes até o último suspiro.
O desempenho da bruxaria no combate à doença fez com que o rei Orísis percebesse que a comunidade bruxa não era perversa como diziam e passasse a vê-la como aliada. Desde então, o pequeno país serviu como refúgio e atraiu inúmeras famílias bruxas.
- De início - continuou Jeifer, - meu pai não queria que ajudássemos os humanos. Ele dizia que nossas poções deveriam ser utilizada em nosso povo apenas.
- Eu não consigo imaginar o vô Jasco sendo tão rude - interrompeu ela. - O senhor conta que ele cuidou dos humanos com tanto afinco.
- Aqueles eram outros tempos - explicou o pai. - Mas eu era teimoso e comecei a trabalhar. Então o próprio rei ficou doente e, a essa altura a fama de nossa família já corria por toda a cidade, assim mandaram me chamar para tratá-lo. O restante você já pode presumir, curei o rei e em agradecimento ele reconheceu a bruxandade como cidadãos do reino.
- Portanto devemos o nosso estilo de vida ao senhor?
- Bem, modéstia a parte, eu tive minha contribuição. Mas nós descendemos de uma longa linhagem de curandeiros. Ajudar os necessitados faz parte de quem nós somos. Se como consequência nós conseguirmos levar uma vida confortável e segura, eu não vejo mal nisso.
- Mas o senhor não ajudou só os necessitados - argumentou Aracena. - Toda a comunidade bruxa se beneficiou. O senhor é um herói para o nosso povo.
- Veja bem, minha filha. Sim, nossa família conquistou uma posição importante e respeitada na sociedade humana que trouxe benefícios para nosso povo. Estou ciente de que muitos me vejam como um herói. Todavia tivemos sorte de o rei Orísis ser um homem razoável. Já ouvi relatos de bruxos que fizeram muito mais do que curar um rei e seu povo e continuaram sendo tratados como escória.
- E haviam muitas testemunhas do trabalho do seu pai - completou Lucena, sua mãe. - O reino inteiro conseguiu se recuperar de uma doença mortal graças à bruxaria. Milhares de famílias humanas tiveram seus filhos, pais, mães e avós curados, desde pobres a aristocratas. Não seria sensato da parte do rei ignorar este fato.
Lucena era uma bruxa um pouco mais nova que o marido e aparentava uma humana com quase quarenta anos. Tinha os cabelos castanhos claros, com um tom puxado para o mel, maçãs do rosto altas e lábios grandes.
Era uma pocionista extremamente talentosa, bem como toda a sua família, que durante o período da peste tornaram-se os principais boticários do reino. Dessa parceria nasceu um romance que, anos mais tarde, culminou em seu casamento com Jeifer.
Nos anos seguintes, o casal dedicou-se a acumular uma considerável fortuna e adquirir uma casa que permitisse o conforto desejado. Fazia tanto tempo que a bruxandade vivia escondida em casebres e sem juntar posses, que o novo lar parecia um verdadeiro palácio. Foi nesse mesmo lar que, muitos anos depois, Lucena deu à luz seus cinco filhos.
Já havia escurecido quando decidiram entrar para preparar o jantar. Seria o primeiro com a família completa em alguns meses.
Jardon, o filho mais velho, viajara para o litoral à procura de um tipo de alga medicinal que estava em falta na região. Antes que estivesse de volta, seu irmão Jarsan fora mandado para cuidar de uma tia doente, em Bekan, a três dias de viagem rumo ao norte.
A velha senhora acabou por falecer e apenas Jeifer partiu para prestar condolências aos primos. De lá, o bruxo foi então para o reino de Sordes tratar uma família de aristocratas. Por fim, Aracena foi levada ao castelo para curar a rainha e só então retornara.
A ceia foi servida na enorme mesa de madeira escura no centro da sala de jantar e consistia num ensopado de carne de pato, arroz e salada de tomate e cenoura. Aracena sentou-se entre a mãe e a irmã adolescente, Solena, de frente para os irmãos enquanto seu pai estava na cabeceira.
A família conversava fervorosamente e compartilhavam as experiências que haviam vivenciado recentemente. Solena queria saber tudo sobre o castelo, as damas e, é claro, o rei. Aracena sentiu-se desconfortável ao falar do monarca, mas esforçou-se para soar o mais natural possível.
Jeldim, o caçula, resmungou que queria visitar as cortes e curar reis também e os pais reforçaram que primeiro ele precisaria se dedicar mais aos estudos das ervas e poções. O menino murmurou alguma coisa e o pai prometeu que o levaria na próxima viagem que fizesse, na condição de aprendiz.
Aracena estava feliz em casa e deu-se conta do quanto sentira falta de estar ali durante sua estadia no castelo, afinal aquela era sua família e não havia outro lugar como seu lar.
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A Bruxa de Ládica
FantasyAracena é uma jovem bruxa que trabalha como curandeira no pequeno reino de Ládica. Durante uma madrugada, seus serviços são solicitados quando a velha rainha adoece. Lá, ela conhece o jovem rei Osmaris, que se encanta pela moça, mas esse desejo pode...