Capítulo 1

166 15 4
                                    

Erínea debruçava a cabeça no pilar do portãozinho que dava para o jardim daquele convento. Ali principiavam seus dias de religiosa, de futura freira.

Não era fácil para a jovem aquele começo penoso. Achava tudo muito tedioso - desde o piso escuro do prédio, o teto cinzento, as paredes foscas, os corredores compridos, até a ausência de música - um ambiente silencioso e místico. De bonito, só se via os rostos das noviças, que ainda conservavam o frescor da juventude, e as flores que cresciam no jardim.

As irmãs de caridade persistiam no uso do hábito, embora já houvessem obtido permissão para não usá-lo. Não queriam dispensar a velha tradição daquela ordem religiosa.

A madre superiora era uma pessoa meiga, magra, de baixa estatura, de um coração impulsivo e uma força tremenda. Muito culta também, especialista em questões psicológicas. Era chamada Madre Conceição, mas o seu nome verdadeiro era Hercília.

Ao passar por duas veteranas, auxiliares de serviço, a superiora ouviu um comentário mais ou menos assim:

    - Aquela noviça dos olhos grandes não me engana... Ou será que a madre ainda não percebeu?

    - Percebi, sim, irmãos. Mas deixem por minha conta. Sei exatamente o momento para submetê-la ao teste.

    - Ah, o teste vocacional...

    - Lembro-me bem que não foi nada agradável.

    - Horripilante...

    - Pois então, tratem de ajudar esta menina indefesa. E vejam lá, não façam alardes.

    - Sim, madre.

A madre retirou-se deixando as duas freiras de olhos compridos, indispostas a continuar as suas opiniões a respeito da nova candidata.

Erínea, a noviça, continuava debruçada no murinho. Sonhava.

Os eucaliptos, numa fileira de dois lados, farfalhavam suas ramagens, enquanto um vento gostoso refrescava o rosto da moça.

Entre os eucaliptos, ficava a estrada, aquela estradinha que trouxera a jovem para aquele convento.

Erínea olhou de um lado para o outro. Não viu ninguém por perto. Enfiou devagarinho sua mão por baixo daquela roupagem e retirou um pequenino objeto que mantinha escondido sigilosamente. Escondeu-o depressa. Foi bom. As duas espiãs bisbilhotavam por detrás de um arbusto, sem que ela o percebesse.

    - É... ela parece muito misteriosa - cochichou a irmã Celestina.

    - Deve ter um passado muito feio.

    - Fala por experiência própria irmã?

    - Oh, irmã Celestina, como ousa atirar-me uma pedra assim?

Irmã Dinorá saiu ofendida, deixando a outra só, bastante preocupada. Afinal, mexer com o passado dos outros é mesmo que renovar uma ferida que já estava a criar crostas cicatrizadas. Dinorá não foi "flor de se cheirar", disto a colega não tinha dúvidas. Entretanto, soube recuperar-se. E, se pertencia àquela ordem religiosa, é claro que sua vida agora era notável e limpa.

Irmã Celestina se aproximou da noviça. Colocou uma das mãos no seu ombro. Erínea virou-se:

    - Oi...

    - Como está se sentindo?

    - Um pouco saudosa.

    - É, isto aqui é muito nostálgico mesmo. Não fosse a vocação da gente...

Vocação... Erínea suspirou fundo. Ela nunca pensou em termos de vocação. Sua entrada para o convento foi motivada por circunstâncias a que ela própria procurava fugir. Sua mãe a obrigou. Agora, ali distante, refugiava-se nas asas das macerações, como se as torturas pudessem ser capazes de apagar o passado de sua vida.

As duas permaneceram por um instante estáticas, olhando-se face a face, sem contudo pronunciar palavra. A mais velha resolveu interpor-se:

    - Então?

    - Não sei...

Grossas e quentes lágrimas brotaram teimosas naqueles olhos castanhos amendoados, indo cair de cheio nas mãos de irmã Celestina, molhando-as, como se fossem plantas a regar.

Foi assim que a freira se propôs a ajudar a nova e futura colega, esquecida das palavras que ela e Dinorá proferiram minutos anteriores.

E uma forte amizade começou entre ambas.

    - Pode confiar em mim, Erínea. Quero ser a sua amiga.

    - Verdade?

Erínea recostou a cabeça no ombro da veterana e desatou-se num pranto sofrido.

****

 Deitada de costas, Erínea apalpou o objeto misterioso que trazia consigo.

Certificou-se de que todas dormiam. Eram seis no mesmo quarto. Meia dúzia, portanto, de principiantes.

A noviça sentou-se. Recostou-se contra o travesseiro na parede. Devagarinho, segurou trêmula o mimo que escondia. Era um chuveiro de brilhante. Colocou-o no dedo anular da mão esquerda. As lágrimas molhavam a manga do quimone que cobria a camisola azul.

    - Ó Lutero, como eu te amo!...

Lutero apareceu na vida de Erínea quando ela tinha quinze anos. Ele cursava o terceiro ano colegial numa escola integrada, pois pretendia fazer engenharia mecânica posteriormente. Erínea fazia o primeiro ano de magistério. Mesmo sabendo que era uma profissão ingrata no que diz respeito a remuneração, a sua opção pela arte de lecionar era motivada pelos pendores e vocação. Pelo menos ela julgava assim.

A Noviça SonhadoraOnde histórias criam vida. Descubra agora