Cinco da manhã.
O sino tocou para o despertar. As moças se levantaram apressadas.
- Não passa bem, Erínea?
- Dormi pouco esta noite.
O rosto da noviça estava abatido. Pálida, de olheiras arroxeadas bem marcantes, numa demonstração de ansiedade e angústia, assim ela se apresentava.
Freiras - veteranas e novatas- se dirigiram para a capela, onde rezariam a missa matinal antes do café.
Erínea cambaleava. As pernas bambeavam ante o peso do corpo, envergado naquela rouparia pesada e martirizante. Sentia a cabeça oca, com vestígio de tontura. Isto vai passar, assim que tomar uma tigelada de café com leite, supôs.
A doxologia se tornava cada vez mais lenta e monótona. Com a cabeça inclinada no encosto do banco da frente, Erínea conseguiu cochilar, o suficiente para um sonho rápido e agitado. Não deu para interpretá-lo. Sonhou cinzento e só conseguiu distinguir umas neblinas por sobre as montanhas.
Da capela ao refeitório, e daí às salas de aulas. A melhor aula era a de sociologia, com irmã Veneranda. Comentavam-se problemas sociais, políticos e econômicos. Era uma maneira de trazer o mundo para dentro daquela "Bastilha".
Depois das aulas, seguia o almoço. Comia-se em silêncio, ou então falava-se baixo. Terminada a refeição, as internas se recolhiam para um período de descanso. Assim, Erínea mergulharia novamente em seu mundo ilusório.
Naquela tarde, porém, aconteceu o contrário. A moça dormiu um sono profundo, tendo o rosto coberto por um alvo e cheiroso lençol em que sua mãe fez questão de passar crochê na bainha superior.
Quando Erínea acordou, suas colegas já tinham se retirado, para o estudo na biblioteca. Era um salão abafado, no qual se encontravam prateleiras repletas de livros em desfile por ordem, tamanho e assuntos literários. As mesas eram de madeira, envernizadas, de formato oval, muito antigas. Algumas até se encontravam em mau estado de conservação. Cadeiras, desconfortáveis, revelavam aspecto rústico, desagradáveis para o assento. Ali as alunas e mestras passavam três longas horas de pesquisas, preparando suas lições. Eram matérias seculares e religiosas.
Erínea sentia náuseas, alérgica ao cheiro de mofo. Sentou-se ao lado de irmã Celestina, pedindo desculpas pelo atraso. Prometeu que não mais repetiria aquela falta. Ao lado da amiga, como que à procura de refúgio e abrigo, a jovem se reanimou.
- Terminei minhas tarefas. Gostaria de ler um romance.
- Que é isso, menina? Não temos romances aqui. Vou lhe dar uma excelente obra. Espere.
Irmã Celestina trouxa um exemplar da vida de Santa Terezinha do Menino Jesus.
- Leia. Vai gostar.
- Prefiro a história de Santa Clara com São Francisco de Assis. Já vi um filme sobre os dois, tão bonito... Os dois renunciaram ao amor para se dedicarem ao sacerdócio.
- Isto que é vocação...
- É...
Foi um alívio quando a campainha tocou, dando por encerrado aquele período de estudos. Agora, as moças teriam a parte de que mais gostavam. Era a horinha de trabalhos práticos e caseiros. Engraçado... como a vida tem paradoxos. Muitas daquelas noviças não gostavam destes serviços em casa; ali, entretanto, faziam-nos com a maior boa vontade. Para dizer a verdade, ninguém se aborrecia. Encontravam, através das atividades, uma maneira de se libertarem da tensão emocional e do tédio. Descarregavam-nos em meio aos afazeres. E se distraíam também. Umas faziam limpezas, outras ajudavam na cozinha, algumas cuidavam das hortaliças e jardinagens, e assim por diante, num carrossel de produtividades úteis e proveitosas.
- Bem que a irmã Conceição podia me escalar para o jardim... - Erínea cochichou com a freira de sua confiança.
- Você gostaria? Vou falar com ela.
Foram momentos agradáveis os que ela passou junto às flores. Conversou com elas como se fossem humanizadas.
- Sabe, Violeta, você e Margarida se dão muito bem. Também pudera! Uma é danadinha e a outra meiga é modesta. Tenho certeza de que não vão brigar nunca. Senhor Cravo, gosto muito de você. Hum! que perfuminho... Ai, a Saudade!... - A jardineira encarou-a por uns segundos. Falou baixinho: Você será minha confidente, certo?
Celestina se aproximou
- Gostou?
- Ih, foi maravilhoso!
- Pois então, tenho uma notícia. A madre esteve observando o seu trabalho e resolveu deixar você definitivamente aqui, com este jardim.
- Verdade, todos os dias? Que bom!
- Está levando em consideração que as plantas carecem de um tratamento mais primoroso, e que você, entre todas, foi a que mais revelou este dote.
- Vou fazer o possível. E teremos um belo jardim.
Erínea deu um beijo na freira, tamanha foi sua alegria.
- E não se esqueça: a boa jardineira sofre as picadas de certos espinhos malvados.
- Disto estou plenamente certa. Estou acostumada, irmã. Mas, não há espinho pior do que...
- Do quê?
- Nada não. Faça de conta que não ouviu.
- Acho que já é tempo de você confiar em mim. Afinal, eu me propus a ser amiga para ajudá-la. Não deve haver segredos entre nós. Comigo e Dinorá é assim, a gente mistura as lágrimas, as saudades e as alegrias. Muitas vezes recordamos o nosso passado e as nossas aventuras. Ora, fomos moças e bonitas...
- Não, irmã, prefiro não tocar em certas questões. Elas pertencem exclusivamente a mim.
- Está bem. Como queira. Conte comigo quando precisar.
- Obrigada.
A noite chegou, com seu manto espesso e negro que fez pairar sobre aqueles prédios isolados. Não tinha lua cheia para clarear os eucaliptos pontiagudos. Tudo era uma amplitude silenciosa e mística. Só se ouvia uma sinfonia quase insuportável de um milhão de grilos.
Mais uma vez o sino tocou. Missa final para encerrar o cotidiano. Terminava sempre às nove em ponto. O bando seguiu para a capela de novo. Tudo ali era cronometrado, um esquema sistemático e metódico. As escalas eram mimeografadas e afixadas em murais, painéis ou outro ponto visual. Ninguém precisava sair emitindo ordens e fazendo anúncios. Todas já sabiam de cor e salteado o currículo e a programação diária. Pareciam máquinas automáticas.
Erínea tinha pressa que chegasse a hora de esconder-se debaixo dos cobertores, para se refugiar em seu mundo de retrospecções.
Felizmente o amém aconteceu. O recinto sagrado ficou solitário. As irmãs retiram-se silenciosas, cada qual para o seu leito.
Trocaram-se todas, para dormir. Tinham que ser discretas. Erínea vestiu um roupão de cetim sobre a camisola. Escovou os cabelos. Aqueles cabelos que antes eram tratados em salão de beleza, uma cabeleira longa, acastanhada, agora foi cortada de qualquer jeito. Precisavam as irmãs afugentar de si qualquer indício de vaidade feminina. Mesmo assim, permaneciam sedosos, macios e perfumados; pois, segundo consta, não se proibia o uso de shampoo e produtos de limpeza, mesmo os de fina produção e boa marca.
Assim que as colegas dormiram... recordação...
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A Noviça Sonhadora
SpiritualeA Noviça Sonhadora Sonho, romance, experiências da vida e os fins bonitos de um amor real... O tema do encontro... As vibrações da vida e das relações mostrando que amar não é pecado, É a vida! Do convento ao campo de missões, Erínea encontrando, se...