Olhos Mortíferos

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Eram três horas da madrugada e a insônia festejava, sem licença, em meu corpo. Os pensamentos dançavam sobre a minha testa e uma corrente de ar quente nascida em meu ventre vagara por cada órgão meu. O que me acontecera é que, há algumas horas, quando o mundo ainda estava acordado e o sol presenteava o mundo acordado com seu espetáculo de esplendor, meus olhos encontraram um brilho superior ao do sol em um tamanho extremamente redimensionado: eram olhos. Eram olhos não, eram estrelas. Eram estrelas sorridentes, saltitantes e castanhas. Eram as estrelas mais bonitas e mais hipnotizantes que eu já vi.
Agora são cinco horas da manhã. Estou dizendo isso porque, quando comecei a falar sobre os olhos, eram três, porém, não fui capaz de evitar: ao lembrar dos olhos eu esqueci sutilmente que estava a descrevê-los e cai em um estado de êxtase sereno, do tipo que inicia vagarosamente como uma abdução alienígena em câmera lenta, alcança um pico que nos faz achar que chegamos à galáxia prometida e termina como se por um buraco de minhocas, fossemos arremessados abrupta e violentamente em direção à Terra. Fim da linha, pés atados ao chão, descrevi os olhos, agora partiremos para a descrição da boca. Ai, Deus! A boca. Os lábios eram viscosos, grossos, rosados, possuam um formato de pecado e vez ou outra tremiam para a esquerda em um gesto tênue que somente um indivíduo tomado por encanto conseguiria capturar. A pele era escura como o céu ao anoitecer e os cabelos eram os cabelos mais lindos que eu já vi. Não sei dizer se eram cacheados ou crespos, ora eram cacheados, ora eram crespos e os fios enroscavam-se uns aos outros em uma determinada frequência, como em uma dança: a dança das ondas oceânicas, uma harmonia perfeita, dando àquele rosto absurdamente artístico uma moldura absurdamente artística. Às seis da manhã, a insônia arredara o pé e eu fui tomada por um sono profundo. Às nove, acordei com os gritos desordenados da minha mãe chamando à porta e tentando, em voz altiva, deduzir o motivo que me fez perder uma manhã inteira de estudos. Seja por sono, por preguiça ou por uma ilusão de autonomia, daquelas que os adolescentem acabam sempre por ter, eu a respondi com silêncio. Os fatos sobre aquela noite, sabemos bem. Quanto à minha irresponsabilidade, talvez, se eu tivesse me dado conta antecipadamente de que o dia seguinte não seria domingo, como imaginei, e sim uma quarta-feira, teria me esforçado dupla ou triplamente para conseguir, naquela noite, pregar os olhos. Sentada à mesa, ao tomar o café matinal  - um pouco atrasada, talvez - acompanhada, unicamente, de minha própria presença, comecei a me questionar se algum dia teria a oportunidade de contemplar aqueles olhos mortíferos novamente e não me conformando apenas com o apreço pelos olhos, perguntei aos céus se em algum futuro próximo ou distante, teria eu a oportunidade de me deleitar naquele corpo inteiro, naquela alma inteira, que me parecera extremamente esfomeada pela vida e mui convidativa. Passadas algumas semanas, a única lembrança que ainda me restava daquele ser angelical começava a se esvair juntamente com minha esperança de encontrá-lo, até que, após um encerramento espetacular de um show do Nando Reis, no bairro da Ribeira, em uma manhã chuvosa, eu estava a dançar desajeitada e graciosamente dentre os ferozes pingos de chuva que escorriam ao longo do meu rosto, quando me deparei com um grupo de jovens cantando sorridentes assentados em forma de círculo à margem de uma calçada: uns estavam com vestes pretas, outros, vestiam tons terrosos, e para a minha surpresa, entre eles estava aquele que de antemão havia despertado em mim tanta curiosidade e aberto em minha mente, o livro das imaginações.

- Eu... Eu não posso acreditar!

- Em que você não pode acreditar? Questionara Clara, minha irmã amiga, que havera ido para o show com o João, com a Luna e comigo, é claro.

- Que chegara ao fim! Foi simplesmente a noite mais incrível de toda a minha vida! Exclamei com o tom de voz de quem fala uma verdade aleatória para esconder a verdade principal.

Sorrateiramente deixei meu grupo de amigos de lado e me aproximei dos jovens que apaixonadamente e com espírito selvagem, estavam a cantar. As músicas que ali tocaram me eram atraentes, mas não tanto quanto o sorriso incandescente que escapara do rosto daquela criatura divina que de tanto desejo de se alegrar e de alegrar aqueles que ali o rodeava, pintou cada partícula das cordas daquele violão com a tinta que produzira de sua própria alma. Me aproximei da roda com as pernas trêmulas, com as bochechas coradas e antes que meu suspiro se convertesse no próximo suspiro, me achei em meio a roda, no exato momento em que o violonista dos olhos mortíferos, perguntara se haveria alguém entre nós que gostaria de sugerir uma canção, e eu, que fui tomada por uma coragem súbita, me atrevi a sugerir que tocasse "Palavras", da magnífica, finada e eterna Cássia Éller, e assim foi. Cada palavra cantada fugida daqueles lábios, os sorrisos que escaparam nos intervalos entre um verso e outro, os movimentos suaves das mãos fortes ao acariciar as cordas do violão, tudo era motivo de euforia, de devaneio, de imaginação fértil e hostil. Ah! Como eu queria que aqueles lábios cantassem os meus nos meus! Suponho que jamais almejarei tanto ser algo como almejei ser aquele violão. Todas as vezes que o olhar mortífero se propunha a encontrar os meus, eu morria. Quão doce, singela e sagaz é a labuta da morte! Enfim, seja por costume ou por razão de existência, o tempo das coisas não para e não agiu diferente naquele momento. Mas diferente do tempo das coisas, o meu tempo parou e parou naquele emaranhado de fios negros, naquele olhar mortífero no qual eu me acabei, naquela pele tom de noite, naqueles lábios, viscosos, grossos e rosados com formato de pecado. Temo que eu tenha que encerrar esta narrativa por aqui. É que minha escrita ficara presa no tempo que era meu comigo e que comigo agora jaz.

Eu, ParadoxoOnde histórias criam vida. Descubra agora