"Eu queria ser o verbo confiar."
Eu queria tantas coisas.
Mais um dia e mesmo tomando aquelas pílulas para dormir constantemente, não consegui pregar os olhos em nenhuma das noites, as luzes invadem as frestas da janela através da cortina, então continuo deitado pensando no resultado dos exames que o Dr. Smith pediu, coletado o tecido para a biópsia, hoje é o dia de voltar e falar com o especialista.
Mil coisas se passaram na minha cabeça e a vontade de me isolar se torna cada vez mais frequente, às vezes sinto naquele filme Os outros com a Nicole Kidman, sinto a presença da Jessica, mas parece que ela não está ali.
Falando no diabo, ela ainda dorme profundamente, como nada tivesse acontecido, aliás, desde que contei para ela parece que me evita cada vez mais. O despertador irritante dela começa a tocar:
- Ed - ela me chama ainda com os olhos fechados - Acorda, já está na hora.
- Já estou acordado - Respondo olhando fixamente para o teto.
Jessica então se levanta e vai direto para a ducha me deixando sozinho em meus pensamentos vazios. Preciso levantar e encarar a realidade.
- Jess, eu vou na consulta com o Dr. Smith, já fiz todos os exames que me pediu.
- Ok. - Responde ela - Pode deixar que saio com meu carro.
- Mas... Você não quer me acompanhar?
- Ed, desculpa, mas hoje tenho uma sessão de fotos com um cliente muito exigente, eu não posso sonhar em perder.
- Ah, tudo bem então. Até mais tarde.
Era de se esperar, imagine Jessica me acompanhando, não sei se seria triste ou cômico, talvez os dois, afinal ela sempre foi uma menina mimada que sempre pensou só nela, como eu não enxergava isso antes? O que é pior, eu não tenho ninguém para me acompanhar e descobri que dentro dos meus 10 mil seguidores no Instagram, eu não posso contar com nenhum deles. Posso rir agora?
Chego no estacionamento e me lembro da última vez que estive aqui, que saí praticamente sem rumo, ao pensar nisso senti uma sensação de impotência misturado com tristeza. Caminho para dentro do prédio para o consultório do Dr. Smith com a cabeça baixa, no fundo já sei quais são as chances, opções e tratamentos, não fazia outra coisa além de pesquisar a respeito na internet nos últimos dias, nesse ponto estava praticamente sendo um expert no assunto.
Ao entrar dou de cara com a secretária doida, que se apresentou extremamente feliz ao me encontrar:
- Bom dia, Senhor Muller - me cumprimentou toda sorridente.
Não quero dar muita confiança, então dou uma breve olhada e aceno com a cabeça. Ela também era secretária do Dr. Smith, uma vez que os dois tinham dois andares no prédio.
Mal chego e o Dr. Smith já me chama:
- Ed, por favor!
Sem muito clima, só caminho em direção a sua sala e tento não fazer nenhum contato visual, o carismático Doutor Smith me encara com afeição e diz:
- Ed, fico muito contente que tenha me escolhido como seu oncologista, num momento acreditei que não fosse mais voltar.
- Doutor Smith, peço desculpas pela última vez que nos encontramos, estava muito nervoso e nem me lembro bem como reagi, sei que o senhor é um oncologista muito bem-sucedido, não poderia ser outro médico, afinal só escolho os melhores.
- Obrigado, é um elogio e tanto, eu entendo que tenha ficado nervoso, é mais normal do que imagina, enfim, sente-se e sinta-se à vontade, vamos falar dos exames, me deixe ver.
Entrego os envelopes e então o doutor começa a ler cada exame: VHS e o resultado da biópsia:
- Vamos ver primeiro o resultado do seu exame de VHS, que significa velocidade de hemossedimentação, esse exame nos ajuda a identificar a presença de processos inflamatórios ou infecciosos no organismo.
Abrindo o envelope e lendo atentamente para os resultados contidos, Doutor Smith continua:
- O resultado do exame VHS está em 107 mm/h, isso significa que pode ser sinal de infecção, nesse caso como estávamos falando, linfoma, uma vez que você entra no quadro de homens com menos de 50 anos. Já o resultado da biópsia, quero lhe explicar um pouco mais sobre, existem dois tipos de linfoma, o linfoma de Hodgkin (LH) e linfoma não-Hodgkin (LNH) a diferença está nas células doentes: enquanto o LNH apresenta apenas células com câncer, o LH apresenta células doentes, misturadas às células normais.
Tento seguir o raciocínio do Doutor Smith, afinal já tinha lido muito a respeito e estava mais familiarizado com a linguagem, ele continua:
- O tipo que encontramos na sua biópsia é o linfoma de Hodgkin, que apresentam células maiores e anormais nos nódulos linfáticos, chamadas de células de Reed-Sternberg. O seu linfoma está no estágio 2, ou seja, o câncer está limitado a uma parte do corpo. Quero que entenda que há tratamentos muito eficazes e a chance de cura é boa, a taxa de cura da doença é de 80% quando o diagnóstico é precoce. O tratamento mais indicado é a quimioterapia subcutânea, feita com uma injeção no tecido gorduroso acima do músculo que usa produtos químicos para matar as células causadoras do linfoma. Aliada a radioterapia, pois você se encontra no estágio inicial.
- E quantas sessões eu vou precisar fazer, doutor?
- Tudo isso vai depender da maneira em que seu corpo reagirá, mas por agora eu recomendaria dez sessões de cada. Eu gostaria de enfatizar o que esse tratamento pode ter como efeito colateral, acredito que o senhor já tenha ouvido falar, que pode causar queda de cabelo, diarreia, feridas na boca, náuseas e vômitos, pele sensível e até mesmo infertilidade. Não que isso de fato aconteça, depende muito de paciente para paciente.
- E qual é o espaçamento de cada sessão?
- Normalmente a cada três semanas...
- Ou seja, o meu tratamento vai durar mais de um ano...
- Ed, eu entendo que tudo seja uma novidade para você, mas mesmo fazendo esse tratamento, você pode viver uma vida normal, fazendo suas atividades...
- Doutor - eu o interrompo - Não quero ser grosso, sei que o senhor está fazendo seu trabalho, mas eu dependo da minha imagem para que eu faço.
- Ed, suas chances são ótimas, foca nisso.
- Tudo bem Doutor, entendi as consequências e o que preciso fazer, agradeço sua atenção.
- Vamos começar o tratamento e você vai me ver com mais frequência.
Me despeço com um aperto de mão, me pego pensando mais sobre essa vida, o que fiz, o que desejei, não sei se queria me tratar, era mais fácil partir, mas pensava constantemente na minha mãe, na fé que ela tinha em mim, no quanto ela dizia que eu era seu milagre e que minha vida era valiosa. Esse é o dia para aceitar ou desistir.
Wishlist - Pearl Jam
"Eu queria ser a música no rádio
Aquela que você sintonizou
Eu queria, eu queria, eu queria, eu queria
Eu acho que isso nunca acaba"
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Nós pertencemos um ao outro
RomansaEd Muller é um nome famoso no mundo da moda, ele tem a vida que muitos queriam, é um modelo internacional bem-sucedido, tem um luxuoso apartamento em Los Angeles, um carro invejável e uma namorada lindíssima. Ele descobre em poucos dias que sua vida...