O pai

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5 de Fevereiro de 2006

- Você aperta aqui e puxa essa outra parte para baixo - minha mãe explicava como descascar um ovo. Eu olhava tudo atentamente e esperava ela entregar o ovo para que eu fizesse a mesma coisa.

Mamãe trabalhava em uma padaria próxima a antiga casa em um bairro chamado "Lírio do Vale", nessa época vivíamos de forma horrível. Meu pai só aparecia quando iria dar dinheiro e eu nunca via ele.

Minha mãe nunca deixava, eu lembro sempre de ela me dizer: QUANDO SEU PAI ESTIVER AÍ, NÃO É PRA VOCÊ APARECER.

A porta se abria

Ela saindo com uma roupa folgada e um pregador de cabelo azul.

Sempre ia na direção daquele carro cinza e grande.

Jamais entendi aquilo tudo.

Minha irmã vivia com a avó dela e ela só tinha 2 anos, minha mãe trabalhou em muitos empregos e nessa época eu poderia dizer que ela realmente era a minha mãe.

Eu nunca entendi, porém sempre achei que ele não gostasse de mim ou algo assim.
——————-

Ela me explicou tudo o que eu deveria fazer.

"Não abra porta para os estranhos e nem faça barulho para chamar a atenção de alguém"

"Não mexe no fogão e nem no ferro de passar roupa"

Não tínhamos Tv, então eu ficava com o meu boneco chamado Antônio.

Era um soldado que me fazia eu me sentir bem, era inspirado no nome do meu avô.

Meu único amigo quando ela saía para trabalhar.

Ela vestiu a roupa branca e colocou aqueles prendedores de cabelo especial e eu pedi a benção antes de ir.

Com a porta trancada eu fiquei observando o brilho da janela. Mais um dia se passava e mais um dia eu comeria ovo cozido com farinha branca.

Quando se é criança, você não entende. Tudo para você é apenas um borrão e parece que o mundo só tem o vazio.

O local era um apenas um vão e um banheiro.

Todos os móveis organizados e enfileirados.

As vezes eu sentia falta do meu pai, falta de uma figura paterna ou até mesmo alguém pra dizer "estou aqui por você".

Eu tinha o meu avô Antônio, que era basicamente o meu pai postiço.

Mas por ele ser mais velho eu sempre me referia a ele como "avô".

Meu amado avô!

Meu avô sempre conta uma história de que quando minha mãe me apresentou para ele eu estava dentro de uma caixa de papelão me escondendo e dizendo que lá seria a minha casa e que eu nunca sairia de lá.

Me levantei e fui na pia da cozinha, os ovos já estavam dentro de uma panelinha e eu só teria que descascar para comer.

Peguei um banquinho e dobrei os joelhos para ficar no tamanho correto.

Comecei a retirar tudo.

*telefone tocando*

Mamãe sempre deixava o celular para caso de emergência mas dizia que se alguém ligasse não era para eu atender.

Continuo tirando a casca.

*tocando novamente*

Coloquei o ovo dentro do prato e fui pegar a farinha branca.

*tocando novamente*

Fiquei curioso e queria saber quem é.

Fui em direção ao celular com aquele som irritante da Nokia que machucava as camadas de ouvido.

*atendi*

- (nome da minha mãe) - um homem falou com uma voz de trovão.

- Ooi, ela tá trabalhando - Respondi tentando ouvir direito, as chamadas nesses celulares eram horríveis.

- Saimon? - O homem perguntou.

- Sim. - Falei baixo

- Ah, tá. Avisa a ela que o Gilson ligou - E o homem desligou.

Fiquei por horas tentando saber quem era mas depois nem liguei mais.

Acabei dormindo e me acordei com a minha mãe batendo na porta e pedindo para que eu abrisse a porta.

Ela entrou e começou a tirar os sacos de pães.

(Desde pequeno eu tenho um amor muito forte por pão, sofri até bullying por comer tanto. Eu comia até 8 pães o que é anormal para uma criança de 5 anos)

- Mãe ligou um senhor perguntando pela senhora - eu falei baixinho para que eu não surtasse sabendo que tinha a regra de não atender chamada de ninguém.

- Era teu pai - ela falou aquilo sorrindo um pouco

- Eu vou vê ele quando? - perguntei esperançoso

- Saimon, o teu pai tem família. Ele não pode sair de lá e dá atenção pra você. - ela respondeu tocando a minha cabeça.

- Eu só queria vê ele uma vez - Falei começando a sentir um aperto no coração.

- Para com esse assunto - ela falou indo para o banheiro tirar a roupa dela.

Fiquei quieto pois eu sabia que se perguntasse mais eu conheceria meu pai no céu.

- Hoje eu vou sair e você vai ficar com a dona Ineida - ela falou saindo do banheiro e começando a se vestir.

Dona ineida era a personificação do diabo

Uma senhora peruana que tinha uma mini mercearia na parte da frente da casa, e alugava alguns quartos atrás para outros peruanos.

Um amor aos olhos da minha mãe.

Um demônio aos meus olhos

Ela tinha uma filha que "cuidava" de mim.

- Aqui dona ineida, eu trouxe ele com o ventilador para ele dormir aqui com a senhora, eu lhe pago assim que o meu salário sair - Minha mãe foi embora e me deu um aceno com a mão.

Logo após a minha mãe sair a dona ineida já começou falando que eu não ia dormir no quarto por causa da noite em que eu mijei na cama dela.

Acabei assistindo alguns clipes sobre o Roberto Carlos e já estava anoitecendo.

O demônio me acordou para jantar.

Acabei ficando sentado no sofá e esperei ela terminar de lavar a louça.

A filha dela começou a se vestir para ir dormir e a casa era um quadrado com mais dois outros quadrados. O quarto da dona ineida era o sem ar condicionado e o da filha tinha.

A filha se trancou dentro do quarto e disse que eu não ia dormir lá.

A mãe dela foi deitar na rede e pegou o meu ventilador para si.

Eu fiquei sentado no sofá quente da sala vendo ela se embalar enquanto eu morria de calor e sono.

Sem cama e lar.

Passei a noite vendo ela pegar o vento que deveria ser meu enquanto se embalava e eu lembro até hoje o pôster do campeão do bbb de 2006.


[um sentimento que eu sinto? Raiva. Relaxem, anos depois a velha morreu]

Diário de um garoto que posta nude na internet Onde histórias criam vida. Descubra agora