Desapegar de cenas estereotipadas

22 1 0
                                    


Me lembro de pensar "tudo mudou agora?" como se esse evento pudesse ter a capacidade de mudar a minha vida e a forma como eu me enxergava como mulher, como pessoa. Isso era o que mais me doía: que uma noite tão insignificante e imbecil pudesse ter essa grandiosidade. Quanto a isso, acho que entendi que não precisava ser nem 8 nem 80.

Isso porque, no início, eu escolhi não pensar sobre e seguir a minha vida normalmente, fugindo de lembranças e evitando o pensamento. Porque eu não queria admitir que nada fosse modificado, nem a minha visão sobre mim e nem a visão das outras pessoas. Por isso contei para pouquíssimos amigos, poucos mesmo. Se o mínimo possível de pessoas soubessem, melhor, eu continuaria sendo quem sempre fui.

Descobri que varrer para baixo do tapete não ajudaria em nada e ainda poderia ser prejudicial à minha saúde mental. Descobri que a minha crise de ansiedade não foi coincidência, porque praticamente nada na vida é. Tratei na análise todas essas questões e sigo conversando sobre isso. E percebi o quanto falar é método catártico fundamental. E, no meu caso, escrever também.

Comecei a escrever sobre isso não com qualquer intenção de postar, mas só para organizar pensamentos e entender o que exatamente eu sentia. Como disse, recentemente, na minha cidade, muitos casos anônimos foram expostos, inúmeros casos absurdamente semelhantes ao meu, e inúmeros outros diferentes, mas semelhantes entre si. São tantos, mas tantos. E eles moram ao lado, sabe? Assim como eu, mais quantas mulheres que eu conheço não quiseram e não querem até hoje falar sobre isso? Por medo, por vergonha, por nojo. Cada uma com seus motivos, que são legítimos e singulares.

Pensa nas suas amigas, colegas, conhecidas, vizinhas, primas, tias. Você realmente sabe se elas não passaram por alguma situação semelhante? Você pode ter certeza? Não, nunca podemos. E quando a possibilidade do anonimato surge, a gente se dá conta da quantidade desses casos. E pensamos "nossa, que coisa horrível", só que essa coisa horrível pode ter saído da boca ou do teclado da pessoa mais próxima de você. Pode ter sido sua melhor amiga, irmã, cunhada.

E, quando a gente fala sobre isso, percebemos que a vida não é como em filmes e séries, em que os acontecimentos são óbvios e não restam dúvidas quanto à gravidade da situação. Não, a vida não é assim. E é preciso desnaturalizar cenas estereotipadas quando falamos de "assédio", "abuso", "estupro". Porque, quando essas palavras surgem, cenas muito nítidas vêm à cabeça como se tudo estivesse em caixinhas delimitadas e óbvias. E não estão.

Eu entendo que muitas outras narrativas são muito piores do que a minha. Piores no sentido de terem ferido mais, de terem sido mais invasivas. Se é que posso colocar assim. Sinceramente, não sei. Mas não acho que dar menos importância a algumas narrativas gere algum efeito positivo. Um detalhe muito sutil pode ter acontecido com uma mulher próxima a você, e você não sabe, mas pode ter machucado muito ela. E quem somos nós para julgar, entende?

Precisamos falar sobre isso para entender que não é preciso ser óbvio para que seja sério, e que algumas situações são formadas por detalhes que só quem viveu entende o quanto foram prejudiciais e machucaram. O abuso às vezes mora nos detalhes. E os detalhes podem ter um peso que só o nosso inconsciente sabe. Não podemos subestimar as narrativas e nem as coisas que, inicialmente, parecem pequenas. É necessário desapegar de estereótipos e desnaturalizar cenas historicamente - e infelizmente - "comuns".

Reflexões para todasOnde histórias criam vida. Descubra agora