eu, eles e uma mudança de planos

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— Me faz cafuné.

Desviei a atenção do meu celular e olhei para baixo. Com a cabeça sobre minhas pernas cruzadas, Jungkook estava estirado no sofá confortavelmente, abraçando uma almofada, o rosto sereno voltado para cima. Seus músculos estavam relaxados, e seus olhos, fechados, tranquilos. Levei a mão livre até seus cabelos escuros macios e enterrei os dedos nas madeixas, como faria na pelagem de um gato.

Nossa relação deu uma completa virada desde a saída até o parque. Não ficávamos mais nos provocando pelos cantos, lançando comentários venenosos na hora do almoço, reclamando na hora das tarefas (ele, ele que reclamava) ou pintando o rosto um do outro na madrugada (ok, isso fui eu, mas aconteceu uma vez só). Na verdade, estávamos começando a agir como seres humanos decentes, principalmente Jungkook.

A mudança no meu agregado foi nítida. Agora ele se sentia confortável até para fazer brincadeiras comigo e com minha mãe, e, melhor ainda, nós ríamos! Quem imaginaria que por baixo daquelas trevas e olhares tortos poderia haver um sorriso enorme, olhos brilhantes e um coração bom? Achei que tivesse ficado no passado, igual àquela cantora que matou seu velho eu, mas são as surpresas que a vida nos faz quando menos esperamos.

Ainda fazíamos coisas juntos, em família. Certo dia, ao invés da reunião de sempre no gramado, fizemos pipoca e nos sentamos na praça do bairro até o anoitecer, onde tomamos suco e jogamos vôlei e conversa fora. Como me lembro perfeitamente, Jungkook foi quem mais conversou, e parecia ter assunto pendente para pôr para fora há meses. Muito provável que realmente tivesse, de todos os dias que passou fazendo voto de silêncio.

— Aí ele disse que eu tinha muito potencial, mas que meu lugar não era lá — disse. Estava com as mãos unidas fechadas em punho, batendo na bola, equilibrando-a diante de si. Aplicou mais força, a levantou mais alto e jogou para mim, que a rebati para mamãe, sentada sobre a toalha de piquenique que havíamos levado.

— Sinto muito, querido — ela se solidarizou. — Sei como você adorava trabalhar com ele. Ainda bem que se livrou daquele verme sanguessuga...

— Mãe — adverti.

— O quê? É verdade! Não vou fingir que gostava dele só porque os dois trabalhavam juntos. Uma vez eu fui visitar Jungkook na empresa e o cretino nem me deu bom dia! Que tipo de desgraçado trata os outros com tanta frieza?

Dona Somi era do tempo que todos eram simpáticos como ela cobrava. Foi criada numa cidade pequena, daquelas que todos conhecem todos, que se ajudam e são unidos de verdade. Parece muito fictício para mim pessoas desconhecidas desenvolverem tal senso de gentileza, ainda mais com vizinhos.

É, nunca fui muito próximo dos outros moradores do prédio. A maioria deles me evitava por eu ser um homem solteiro que morava sozinho e quase sempre chegava depois das duas da madrugada — agora comprometido, com licença —, outros desconfio que mantivessem distância por eu ser gay. Alguns até se salvavam, como a dona Bae da porta ao lado e sua filha Joohyun, que sempre seguravam o elevador quando me viam sair de casa, e algumas famílias do andar de baixo que me mandavam cartões de Natal, Páscoa e Ano Novo — provavelmente mandavam para o prédio todo, mas eu ainda apreciava o gesto.

Vai ver eu sou apenas um amargo solitário que não sabe o real significado de simpatia. Brincadeira, eu sou extremamente simpático, até com o senhor do térreo que disse que rezaria por mim no culto ao me ver abraçando Hoseok na calçada.

— Eu também penso assim, não tem problema — Jungkook respondeu gentilmente, sorrindo para minha mãe. — No fim era só mais um ignorante. Sequer consegui fingir lágrimas de aflição quando me despediu. Ano passado foi complicado para mim, bem complicado, e eu perdi tanto que nem liguei para uma coisa ou outra a menos na minha rotina.

eu, meu ex e minha mãe × jk+jmOnde histórias criam vida. Descubra agora