Samara caminhou por um longo tempo. Seus pés doíam, sua cabeça não parava de girar com tantas ideias e questionamentos e ela odiava não ter resposta para quase nada. Era exaustiva a frustração de construir uma complexa linha de raciocínio e não acabar em algo sólido. Estava decidida a deitar pelo gramado por um tempo quando um pequeno brilho a fez olhar para o céu.
Era modesto, quase escondido. Por uma fração de segundo, Sam animou-se. Que respostas teria agora? Será que sua caminhada estava mais perto do fim? Será que ela estava perto de driblar aquela ideia — ainda desconhecida — de destino?
Porém, a estrela falou.
— Olá. — A primeira coisa que a menina percebeu foi o tom indiferente cortando o ar e fazendo com que ela se encolhesse, desconfortável.
— Oi. Eu sou Sam, e você? — Acenou rapidamente, mas o suspiro audível da Estrela fez com que se arrependesse na hora.
O problema é que Samara odiava pessoas que escolhiam ser rudes. Uma das piores sensações, já muito experimentada por ela, era não se sentir recebida, bem-quista por alguém. Não tinha relação obrigatória — ela pensava — com insegurança ou com uma sutil necessidade de ser amada, mas sim com o pensamento de que, se não há razão, por que ser tão grosseiro com alguém? Essa tal Estrela sequer a conhecia e não era como se a garota estivesse muito contente em estar ali.
— Então, você vai fazer a pergunta ou não? — Quem suspirou dessa vez foi a garota, pedindo por paciência.
— Por que você está sendo tão rude?
Ela gostava de pensar que esse sentimento não tinha a ver com ego. Gostava de imaginar que a única razão para detestar esse tipo de atitude correspondia ao seu apreço pela gentileza e bondade, e não era uma completa mentira. Entretanto, ela também sabia que pessoas gostam e imploram pelo mínimo afeto, não sempre pelo prazer que esses sentimentos despertam, mas pela segurança. Quando alguém sente-se amado, sente-se confortável. Sente-se aceito. E não é isso que todos desejam no Amor? Alguém capaz de aceitá-los pelo que são? Porque, quando isso acontece, então está tudo bem. Então suas qualidades são reafirmadas por quem os ama. Estão confortáveis e, os outros, domados.
Não é um defeito. Não há problema em querer ser amado. Samara não havia experimentado todos os tipos de amor e, para ser honesta, mal havia experimentado o que pensa ter recebido. Ainda assim, sabia que essa era uma das grandes razões movendo cada peça naquele imenso tabuleiro social. E, mais do que isso, sabia que, às vezes, algumas pessoas mergulham tão fundo nesses desejos, que acabam sozinhas num mar aberto. Isoladas, ou com medo demais de não receberem o menor dos cuidados, ou tão obcecadas em terem uma alta quantidade disso que nunca experimentam o sentimento real, apenas projeções vazias de significado.
Apesar disso tudo, a garota sentiu-se obrigada a perguntar.
— Estou sendo rude porque não gosto de você. — O choque foi tão grande quanto o tom ríspido da afirmação.
— Você nem me conhece! Como pode não gostar de alguém sobre quem não sabe nada? — Samara cruzou os braços, indignada.
— Eu sei que sua família é a razão para eu estar preso aqui! Não sou nada além de uma mera estrela servindo de adereço na sua ridícula jornada. Diferente de June, nem todos aqui beijam seus pés ou os da sua mãe.
— Minha mãe? — As palavras saltaram de sua boca. Começava a pensar que, quanto mais tempo passava ali, mais parecia desconhecer seu chamado destino e sua vida.
— Ela esqueceu. Todos os humanos nos esquecem e é por isso que vocês todos são privilegiados malditos. Vocês fingem que apreciam arte e os sentimentos que a movem, que gostam de aprender e de compreender tudo que os cerca, mas nunca se importam de verdade! Queimam livros e quadros conforme conveniente, destroem esculturas tentando decidir quem fica com o grande prêmio, que Nação vai carregar a grandeza de possuir um objeto artístico ou histórico, esquecem que são formados pelas experiências que tiveram também conosco. — As palavras vêm furiosas como o som de trovões numa tempestade forte. Samara tem os olhos arregalados, surpresa e quase compassiva com o desabafo. — Qual é a coisa mais pertinente na memória de alguém que perdeu outra pessoa, Samara? O que resta da existência dela?
Por mais clichê que seja, Samara sabe a resposta, mas se cala. Amor, ela pensa. A memória que fica de alguém que partiu, independente do sentido, é o quanto essa pessoa doou-se a você e vice-versa. Talvez seja por isso que queremos tanto ser amados, por isso que tem relação com o ego. Quando você se vai, ainda pode existir na vida de alguém em forma de sentimento.
— Exatamente. — Agora, seu tom de voz era brando. havia verdade em sua dor. — Nós, aqui, não existimos se não formos lembrados e cuidados, amados de alguma forma, se você preferir essa palavra. Por séculos, os humanos criaram e destruíram, consecutivamente. Acontece que, agora, poucos lembram de nós. Poucos importam-se em aprender sobre nossos universos, de verdade. Sobre nossos criadores, o que os movia. Não estou dizendo que não há coisas importantes acontecendo e que sua espécie perdeu o rumo completo, mas lembrar de quem ajudou-os a ser quem são é o mínimo que deveriam fazer. Lembrar de quem consegue descrever o que eles sentem, seja com palavras, um pincel com tinta ou qualquer objeto moldável.
Novamente, Samara ficou em silêncio. Entendia o que a estrela estava lhe dizendo, porém não compreendia o que sua família, exatamente, tinha a ver com isso. Será que todas as garotas jovens mergulhavam em mundos como aquele?
— Não, Samara. Você realmente não lembra de nada? — Um suspiro audível escapou. A rispidez da estrela havia sumido agora, dando lugar a um tom quase suave.
A menina deu de ombros. June havia dito que ela era ainda um bebê, como poderia lembrar de qualquer coisa?
— Mas se todos esqueceram-se, quem eram aquelas pessoas no museu?
— Elas não eram reais. São nossas memórias sendo revividas repetidamente. Na verdade, você veio sozinha. Não notou que o bilhete da exposição era antigo?
— Eu... Não sei, achei que fosse de propósito.
A realização foi atingindo a menina aos poucos. Agora que tinha resposta mais concretas, aquilo estava começando a parecer um sonho maluco do qual ela não sabia se era pior não acordar ou despedir-se.
— Desculpe. — A menina sussurrou. — Eu também esqueci. Agora sei porque sente-se assim.
— Bom, acho que melhor do que suas desculpas é você sair daqui e consertar isso. Está pronta para sua pergunta?
— Eu… eu acho que já sei o que você vai responder. — Era quase óbvio para ela, depois dessa conversa.
— Então me diga.
— Alguém escolheria a tristeza, o cinza, a melancolia, porque não lembra mais como é existir de verdade, está sozinho, sem cuidados.
O que recebeu, num primeiro momento, foi o silêncio. Se não fosse seu brilho, a garota apontaria que a estrela havia sumido e desistido de qualquer conversa final. Como sempre naquele mundo, o tempo seguia outra lógica e Samara pensou ter esperado mais do que realmente o fez para ser respondida.
— Muito bem, Srta. Revedance. — A estrela parecia sorridente, por mais estranho que aquilo parecesse.
— Mas, se me permite a pergunta, o que minha mãe tem a ver com tudo isso? Você falou de forma tão magoada dela...
— Quando tinha a sua idade, Belle também passou por isso. Sua mãe iniciou um projeto para não deixar com que fossemos esquecidos, foi quando você nos viu. Porém, com o tempo, ela esqueceu-se também. Agora, vivemos presos aqui, num museu vazio e horrendo.
— Que projeto? — Ela estava chocada. Sua mãe não havia sido uma mãe ruim, mas também não parecia entender como Samar funcionava. Apesar de dar a ela os livros e tintas e não criticar seu jeitinho, Belle nunca deixava-se ser absorvida pela magia com a própria filha. O mais perto que ela chegava disso, pelo que Sam lembra-se, era manter o jardim de rosas bem cuidado. Nada mais, nunca.
— Você ainda não compreendeu? — Uma pausa silenciosa segui-se, a jovem esperando ser respondida. — Bem, está a seu cargo descobrir isso, então. Boa sorte, Samara.
— Mas...
— Você precisa ir. — A estrela interrompeu. — Ainda há um caminho a percorrer.
Suspirando, a menina deu os primeiros passos, a cabeça mais confusa do que quando despediu-se de Aphelion. De braços cruzados e as curtas mechas do cabelo esvoaçando, Samara virou-se novamente.
— Eu sequer sei seu nome.
— Sou Rudá. Meu dever é ter luz para iluminar os caminhos e o seu é garantir que isso aconteça.
Com um sorriso, Samara despediu-se e saiu andando, com mais certeza de onde pisar.
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Starry Girl
РазноеUma breve narrativa sobre a garota que abriga coragem, encantos, doçura e genialidade em cada pedaço que a constitui. Cercada de mistérios e questionamentos, ela parte numa aventura mágica a fim de documentar aquilo tudo que ainda não entende.