Todos os melhores contos de fada começam com o clássico “era uma vez...”. No entanto, peço licença para fazer diferente nesta história: seguirei Guimarães Rosa a fim de trazer sua singularidade para uma personagem digna dela, pois enfrenta cada dia de forma excepcional.
Assim, foi de incerta feita, que Samara olhava pelo grande janelão da sala, desejando algo mágico. Não estava, como de costume, na rua, brincando com as outras crianças ou mesmo fingindo caçar borboletas no jardim florido de sua mãe, alegando que só o fazia para poder estudar a magia presente nas asas de um animal tão belo e delicado. Afinal, era sempre assim que via o mundo: com um véu tecido de fragmentos mágicos e brilhantes cobrindo cada pessoinha que ousava cruzar o caminho da pequena menina. Seu pai costumava dizer que isso atrapalharia quando ela crescesse, que tudo resultaria numa mulher ingênua, incapaz de arrumar um marido ou mesmo um emprego, tamanha sua dedicação às coisas do imaginário.
— Você não é Alice, minha filha. Não existe nenhum País das Maravilhas por aqui. — Ele costumava dizer, desde que a menina discursara na mesa de jantar sobre o último livro que lera.
A mãe apenas acariciava seus cabelos e a olhava, ora preocupada, ora como se fosse a maior preciosidade, ainda que não a compreendesse. Talvez ela também tivesse sido apreciadora dos grandes encantos quando menina e aquilo fora-lhe roubado. Ao menos, era isso que a filha pensava quando via a ambiguidade que a cercava.
Por isso, naquela tarde fria e chuvosa, Samara procurava na paisagem cinza algo que a levasse para outro mundo, um mais colorido, doce e com cheiro de morangos em dezembro. O ponteiro do relógio marcava 16h e a menina já tinha pintado um desenho, feito carinho no gato chamado Branquinho, observado o cozinheiro fazer uma torta de coco, terminado um livro — jamais esqueceria a Bolsa Amarela de Raquel — e não tinha motivação para ler outra história ou ouvi-la de sua mãe, que folheava a programação de uma nova peça de teatro no centro da cidade. Deixando manchas temporárias no vidro limpo ao suspirar alto, Sam levantou-se e saiu pisando firme em direção ao quarto, recebendo um olhar desinteressado da mãe.
No caminho, esbarrou no móvel novo e recém colocado naquele canto da sala, um toca discos de madeira, reluzente por conta do verniz, mas que nunca era usado. Engolindo um gemido de dor, sua atenção focou-se no quadro pendurado na parede à sua lateral. Era um campo num dia de inverno, coberto por neve onde deveriam haver flores, sem qualquer borboleta colorida dançando pelo jardim e apenas contendo uma árvore sem folhas. Parecia bem assustador, num primeiro momento, mas quanto mais a menina olhava para a tela, mais intrigada ficava. Não conseguia desprender os olhos da paisagem tão delicada e melancólica. Por que alguém pintaria algo tão triste e… cinza, quando se tem uma infinidade de cores?
Naquela noite, Samara tomou uma decisão, quase uma promessa: ela documentaria as coisas tristes e entenderia por que razão alguém optaria por isso e não pela magia, essa tão importante, mas que não conseguia explicar.
Ela de fato fez isso. Por um tempo, apenas analisou, novamente, os quadros da casa, mas nenhum, exceto por aquele específico, continha o elemento que ela buscava. Eram todos alegres, coloridos, calorosos — mágicos. Depois, tentou documentar os livros da biblioteca de seu pai, mas ela ainda não entendia direito o que significavam todas aquelas leis e teorias cinzas. Ainda assim, Samara não desistiu. A cada dia, parecia mais motivada. Andava até com um caderninho debaixo do braço, a capa de recortes de jornal feita por ela. Carregava-o pelo parque, pela casa, pelo jardim e quase levou para o chuveiro.
Porém, as aulas voltaram. A menina agora precisava se focar, era tão cobrada pelo pai que não sentia vontade ou mesmo disposição para documentar qualquer coisa naquela casa. Decidiu que aquele ambiente não era triste, era mortal: capaz de enterrar seus sonhos e ideais por exigências desnecessárias no momento. Samara não queria, não precisava crescer agora. Mas o fez.
O tempo foi passando e a garota magricela de cabelos compridos e negros tornou-se uma jovem bonita, o rosto de olhos amendoados escuros sendo moldado pelos cabelos curtos estilo francês. Também deixou para lá sua grande pesquisa. Precisava estudar e ajudar a cuidar da mãe que adoecia na cama por conta da tuberculose não tratada. Seu pai se ocupava com o trabalho o dia inteiro e parecia, verdadeiramente, tão arrasado, que Sam não pensou duas vezes antes de assumir a situação, ainda que fosse uma menina. Por meses seguiu sua rotina de levantar, checar a mãe, comer, alimentar a mãe, tomar banho, ajudar a mãe. Ao chegar da escola, ler um livro para ela, fazer uma xícara de café para o pai, jantar e dormir.
No entanto, numa quarta-feira chuvosa, foi levar uma xícara de chá para a mãe e encontrou a cama vazia, os lençóis bem esticados sobre ela. Samara olhou pela grande janela que não conseguia iluminar o quarto por completo, por conta das nuvens cinzas lá fora.
Cinza. Tudo era cinza.
Pelos próximos dois meses, viveu no automático. Era estranho ter sua própria vida de volta e estar ainda mais afastada do pai, completamente quebrado pela morte da esposa. Já havia terminado aquele ano na escola e, por sorte ou pena dos professores pela situação, havia sido aprovada. Então Samara passava o dia lendo, cuidando para que a casa estivesse apresentável e jardinando. Sempre com uma xícara de café nas mãos, foi, novamente, numa manhã de quarta-feira chuvosa que a campainha tocou. Isso nunca acontecia porque os únicos a entrarem ali, seu pai e o cozinheiro, tinham as chaves.
Ainda surpresa, foi até a porta pesada feita de carvalho e a abriu. O carteiro não era o mesmo que sempre deixava as correspondências na caixinha com seu sobrenome. Era um homem baixinho, narigudo e lembrava o Conde Olaf, embora tivesse um olhar doce.
— Não perca a hora! — Ele disse a ela, abrindo um sorriso e lhe entregando um envelope.
— A hora para quê, senhor? — Samara deveria estar com medo, ela sabia. Mas tudo que sentia era curiosidade, essa amiga que estava tão distante e da qual ela sentira tanta falta.
— A hora! A hora! Você sabe, não pode se atrasar! — Dito isso, saiu caminhando até a rua, os pés quase flutuando acima do gramado.
A jovem fechou a porta e correu para o grande janelão da sala, sentando-se na beirada. Largou a xícara de café ao lado e analisou o envelope. Não havia endereço algum, remetente, código postal, nada além de um nome, escrito numa caligrafia perfeita. Samara Revedance.
Abriu o envelope e tudo que encontrou foi uma espécie de folheto, a caligrafia, novamente, impecável no papel amarelado. Era a programação de um museu no centro da cidade. Uma exposição surpresa de hoje, às 19h em ponto.
Era óbvio o que aquilo significava. Uma simples divulgação do museu, considerando o sistema que comanda o mundo. Simples. No entanto, ela ainda tinha inúmeras perguntas rondando sua mente. Será que os outros haviam recebido? Por que havia somente seu nome e não do seu pai? Aquele carteiro não era ninguém da pequena cidade, era?
Mais que isso, por que não havia remetente?
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Starry Girl
NezařaditelnéUma breve narrativa sobre a garota que abriga coragem, encantos, doçura e genialidade em cada pedaço que a constitui. Cercada de mistérios e questionamentos, ela parte numa aventura mágica a fim de documentar aquilo tudo que ainda não entende.