Capítulo 6 - Eu não tenho talento para a boemia

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Miguel amarrou o cabelo e então colocou a água para esquentar no fogão. Reyna estava sentada à mesa, ainda parecendo chateada. Luna tinha sido muito grosseira com ela, e Miguel estava feliz que ela tivesse ido embora. Já não gostava de Luna, mas depois das ofensas que tinha ouvido na noite anterior ela lhe desagradava ainda mais.

Tinham descido para o porão, onde um pequeno apartamento tinha sido montado anexo à sala das estátuas. Era apenas uma suíte e uma cozinha mal equipada, que René costumava usar quando precisava ficar muito tempo trabalhando e que estava praticamente abandonada antes do retorno de Miguel. Ver o estado em que as coisas estavam quando voltou lhe deixou triste. Não sabia o quão mal René estava antes de encontrá-lo, e ainda que soubesse que ele estava doente e não conseguia mais produzir como antes, ainda assim tinha se surpreendido ao se deparar com trabalhos abandonados e o estúdio praticamente morto.

Morto, não vivo como ele e os outros aprendizes costumavam comentar: respirando, produzindo, cantando, e se aquecendo com a movimentação dentro dele.

- Você está morando aqui?

Ele riu enquanto pegava as xícaras.

- Você acha que Thomas está me pagando tão mal que eu preciso viver no porão do estúdio?

- Não foi isso que eu falei! - Ele sorriu, satisfeito pela maneira como Reyna ficou envergonhada.

- Eu aluguei um apartamento no centro. Não muito maior que esse aqui, mas é o suficiente só para mim. Você quer açúcar?

Ela negou, parecendo distraída ao olhar as peças meio esculpidas a alguns metros de distância. Reyna parecia deslocada ali, com os cotovelos apoiados na mesa de ferro desbotada. Miguel fez uma anotação mental de colocar mais aprendizes para trabalhar ali, ou o ar de abandono nunca seria eliminado. Pensou em René, sozinho em uma cama de hospital, e fez outra anotação mental de visitá-lo durante o almoço. Ia dizer algo mais quando se distraiu com Reyna levantando e caminhando até uma das peças.

Aquele bloco era pequeno, de mármore claro com veias azuladas. Estava sob uma mesa e só metade tinha sido esculpido. Assim que ficasse pronto seria uma sereia com uma longa cauda que se enrolaria abaixo dela, mas naquele momento ainda era uma figura disforme e só era possível identificar os olhos fechados e uma parte da face. Quando Reyna virou o rosto para olhá-lo, ele percebeu que, não pela primeira vez, tinha colocado sem perceber um pouquinho dela no que fazia.

- Eu gostaria de ter… Como você disse naquele dia? "A mínima veia artística".

- A vida da realeza é mais glamurosa que a dos artistas - avisou, incapaz de não achar graça.

- Sem dúvidas mais descomplicada, também - suspirou.

Pensou em fazer uma piada sobre como qualquer vida era mais descomplicada que a da realeza, mas ela ainda parecia um pouco chateada então ele não o fez. Ao invés disso caminhou até ela com vontade de abraçá-la, mas se contentando em apenas ficar ao seu lado.

- Ainda dá tempo de você virar artista. Eu vou te ensinar tudo que eu sei. Posso até contratar você e te pagar tão mal que você vai precisar morar em um porão, como o resto de nós. O que você acha?

Reyna deu um sorriso mínimo, e isso fez Miguel ter vontade de colocar um sorriso exatamente igual na escultura de sereia atrás dela.

- Talvez eu aceite. Não me parece uma ideia tão ruim assim.

- Aqui - ele buscou um dos blocos de madeira usados para as aulas. Era pequeno, com dez centímetros em cada lado. Puxou do bolso do moletom um canivete, e se encostou na mesa sentindo o olhar de Reyna em si. Ele começou a esculpir a peça, removendo tiras de madeira de maneira hábil, sentindo nostalgia pelos seus tempos de aprendiz. - Viu só? Não é tão difícil assim.

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