O dia que eu atropelei uma pilha de caixas de leite na promoção com meu carrinho de mercado
Os olhos que me olhavam de volta do espelho não podiam ser outra coisa que não assustados. Você consegue fazer isso, Duda, eu sei que você consegue. Respirei fundo, saboreando aquele gesto, e num pequeno impulso de desespero descarreguei um tapa na lateral do meu rosto.
─ Ai! ─ havia sido um pouco mais forte do que eu havia calculado.
─ Que isso, menina, se machucou? ─ a voz da minha avó soou abafada por trás da porta fechada do banheiro.
─ Tá tudo bem! ─ gritei de volta, abrindo a torneira e dando descarga para disfarçar a minha demora.
Joguei mais um pouco de água no rosto, torcendo para que a sensação fria sumisse com a mancha vermelha na minha bochecha branca demais. Sempre fui muito branca, mas não tanto quanto naqueles últimos meses.
Sequei o rosto com a toalha e a pendurei no ombro, decidida a jogá-la nas roupas sujas quando estivesse passando pela lavanderia. Mesmo que minha avó reclamasse, eu me mantinha sujando toalhas e toalhas com maquiagem vencida.
Destranquei a porta com cuidado, encontrando a minha avó me esperando com as ecobags penduradas nas mãos e meu casaco roxo favorito na outra.
─ Finalmente! Já estava a ponto de chamar os bombeiros! ─ ela disse, precipitando-se a pegar a toalha do meu ombro enquanto me entregava o casaco ─ Sujou outra toalha, Maria Eduarda? Acha que eu sou sócia da CEDAE?
Dei de ombros, vestindo o casaco e correndo o fecho até o meu pescoço.
─ Com a água que estão fornecendo para gente é melhor deixar suja que tentar lavar.
Minha avó deu uma risadinha leve. Ela era uma senhorinha muito sorridente e extrovertida, conhecia metade do condomínio pelo nome e com a outra metade ela tinha intimidade o bastante para chamar pelo apelido.
─ Tá aqui a lista. ─ ela me entregou metade de uma folha de ofício partida na vertical, preenchida de cima a baixo, junto com as bolsas ─ Agora, anda, anda. Senão o almoço vai sair tarde!
Enquanto dizia, ela já me empurrava em direção a porta de serviço do apartamento. Aproveitei para verificar as chaves no seu bolso ─ estavam lá ─ e o celular no outro ─ estava lá também, mas não precisava dele, por isso, o entreguei na mão da minha avó, apenas um segundo antes dela fechar a porta às minhas costas.
No corredor branco e mal iluminado do prédio, deixei escapar um suspiro, posicionando a máscara vermelha de bolinhas brancas no rosto. Cobri o cabelo, preso em um coque ralo, com o capuz e desci as escadas meio saltitando, mas com o nervosismo fazendo tremer cada célula do meu corpo.
Sair de casa havia se tornado... burocrático, para dizer o mínimo. E, convenhamos, se não fosse uma situação especial, minha avó nunca que perderia uma boa ida no mercado e me mandaria no lugar.
Mas era o que tínhamos para aquela semana. Como havia sido na semana anterior, e na anterior aquela, e na que veio antes... E, sinceramente, pela maneira como as pessoas e os governantes estavam levando aquela crise sanitária na brincadeira, sabia-se lá por quanto tempo nós ainda viveríamos daquele jeito.
O hall do prédio estava silencioso ─ Seu Jorge, porteiro de lá desde que eu era um bebê, havia sido afastado do trabalho tão logo começaram as restrições ─ e usei o cotovelo para destravar o portão e empurrei-o com as costas para sair.
Como mágica, assim que me vi na rua, prendi a respiração. Como se isso fosse ajudar de alguma coisa... E me vi congelada naquele lugar durante alguns segundos antes de ser capaz de lembrar o caminho do mercado e recuperar o movimento.
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Amor em tempos de pandemia [COMPLETO]
RomanceEm tempos de isolamento social, quando o recomendado é só sair de casa para atividades essenciais, Duda conhece Catarina no único lugar possível: o mercado.