Quando eu fui ao mercado e não me senti uma neurótica deslocada. Apenas neurótica.
Os olhos que me encaravam do espelho, dessa vez, estavam deitados sobre olheiras violentas. Mesmo assim, havia algum novo brilho neles, alguma excitação. E, é claro, o mesmo desespero que sempre havia neles todas as terças-feiras pela manhã.
─ Você faz isso toda semana, Duda, é só mais uma vez. Anda! ─ falei, apontando o dedo para o meu reflexo.
E então soltei um suspiro, curvando-me sobre a pia e lavando meu rosto com a água fria que descia da torneira.
Abri a porta do banheiro e encarei minha avó me aguardando com um sorriso no rosto. Meu casaco roxo favorito em uma mão e as ecobags que eu sempre usava para fazer compras no mercado.
Peguei o casaco primeiro, vestindo-o enquanto minha avó pegava a lista e entregava na minha mão, jogando as bolsas de pano no meu outro ombro. Meu celular vibrou no bolso da calça, e eu o peguei imediatamente enquanto escutava a minha avó falar comigo.
─ Não esquece nada da lista desta vez, viu, senhorita? ─ ela resmungou, apesar do bom humor estar evidente no seu rosto.
Eu sabia bem o motivo daquilo. Ela estava feliz porque eu estava feliz, e o motivo da minha felicidade era, bem...
Catarina (mercado): Dez e meia na entrada?
Maria-Eduarda-Digo-Duda: Pontualmente.
─ Eu nunca esqueço nada, vó! ─ eu respondi com uma risada, procurando camuflar o sorriso bobo que eu tenho certeza de que havia cruzado o meu rosto.
─ Aham, acredito! Com a Catarina ao alcance do olho, então... Ai, ai, pobre lista de compras.
─ Ei! ─ reclamei, bem quando a minha avó já me empurrava na direção da porta.
Antes que eu pudesse entregar meu celular a ela e ser empurrada para o corredor ─ como ocorria todas as semanas ─, a minha avó parou e pediu que eu esperasse por um instante.
Me deixou ali plantada na porta e correu para a cozinha. Consegui ouvi-la mexer em talheres e armários e já ia perguntar, curiosa, o que ela estava fazendo quando ela voltou, com um potinho roxo quadrado nas mãos.
Eu franzi o cenho.
─ O que é isso?
─ Brigadeirão. Leva para ela, diz que eu mandei.
Eu peguei o pote em choque, olhando dele para a minha avó repetidas vezes sem dizer uma única palavra. Minha avó não dava um pedaço daquela receita para qualquer um. Por mais que ela sempre fizesse o brigadeirão nos meus aniversários e em festas de fim de ano de família, jamais havia concordado em servi-lo nas minhas festas da escola ou do curso de inglês, por exemplo.
Não era só a receita que ela escondia. Ter a oportunidade de sequer provar o brigadeirão da Dona Vilmara era algo que só as pessoas que ela realmente considerava podiam se gabar.
─ Vó... ─ eu balbuciei como uma criancinha ─ Tem certeza?
─ Claro, meu amor. ─ ela acariciou meu queixo com a mão delicada e enrugadinha ─ Qualquer um capaz de te fazer radiar que nem uma estrela desse jeito merece um pedaço do meu brigadeirão.
Tão rápido quanto o semblante felizinho veio, ele foi embora. Minha avó me pegou pelo ombros e me empurrou em direção à porta, apenas recolhendo meu celular das minhas mãos antes de me inserir no corredor.
─ Agora, anda logo! A última vez que você chegou atrasada no mercado eu tive que passar o restante da semana com você desinfetando a minha casa inteira a cada dez minutos.
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Amor em tempos de pandemia [COMPLETO]
RomanceEm tempos de isolamento social, quando o recomendado é só sair de casa para atividades essenciais, Duda conhece Catarina no único lugar possível: o mercado.