Parte Dois

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Quando eu compartilhei gratuitamente minhas técnicas de compras no mercado ao invés de vender um curso online desnecessariamente caro e sem embasamento científico

─ Anda logo, menina! ─ minha avó ralhou comigo, a voz abafada pela porta do banheiro.

Meus olhos me encaravam ansiosos no espelho manchado do banheiro, e eu suspirei uma nova vez. Terça-feira, dez de vinte duas da manhã.

─ Vai, você consegue! ─ apontei para meu próprio reflexo, e então abri a torneira e joguei água no rosto.

Quando enfim abri a porta e saí, me deparei com a minha avó me esperando do lado de fora como de costume. Meu casaco roxo favorito em uma mão ─ estava particularmente calor naquele dia ─ e as ecobags na outra.

─ Não esquece da pimenta do reino dessa vez, mocinha! ─ a minha vó repetiu a bronca pela trecentésima vez aquela semana, e eu só revirei os olhos e peguei a lista de compras da sua mão.

Bem no meio da lista, na categoria temperos, ela havia escrito muito grande e com letras vermelhas PIMENTA DO REINO.

─ Ei, é sério isso? ─ cobrei, apontando aquele exagero desleal no meu único esquecimento desde que o mercado passou a ser minha responsabilidade.

Minha avó riu e sacudiu os ombros.

─ Dez e vinte e cinco, Maria Eduarda, vai logo antes que você chegue um mísero minuto atrasada naquele mercado e eu seja obrigada a ficar te ouvindo reclamar. ─ ela disse, me empurrando com aquela delicadeza bruta porta afora.

As chaves estavam no bolso, meu celular estava na mesinha de centro sendo o único expectador da tv ligada. A porta fechou e me vi mais uma vez no corredor mal iluminado do terceiro andar.

Coloquei a máscara vermelha de bolinhas brancas, fechei o casaco até o pescoço e posicionei o capuz sobre o cabelo enquanto já enfrentava as escadas do apartamento, então a porta, a rua, a desinfecção da barra de ferro do carrinhos e, por fim, o mercado.

O relógio de parede marcava dez e trinta e um. Felizmente, minha tática era a prova de falhas. Não perecíveis. Massas. Temperos ─ PIMENTA DO REINO. Conservados ─ esse atum enlatado deve estar mais caro que meu rim esquerdo. Supérfluos ─ também conhecidos como o que fazia minha avó me suportar na TPM. Não tinha nada de limpeza na lista. Bebidas ─ longneck de cerveja para uma live de pagode.

Hortifruti. Era aqui a parte mais demorada do meu processo no mercado. Não só porque aquela parte da lista era especialmente grande mas também porque escolher legumes e verduras a uma distância segura tocando só no estritamente necessário era particularmente difícil.

As batatas eram fáceis ─ só procurar as pequenininhas ─, e cenouras era só avaliar as com cor mais bonita. O problema mesmo era conseguir escolher uma dúzia de maçãs perfeitamente belas e inteiras sem conseguir ver se elas tinham um amassado do outro lado.

Mas eu estava pronta. Segurei o saco plástico ─ totalmente contaminado, eu tinha certeza! ─ tamanho M na mão esquerda e me posicionei perfeitamente a dois passos seguros da baia. Tinham umas maçãs muito feias naquele dia, ia ser difícil... Fiz uma anotação mental para reclamar sobre aquilo caso eu descobrisse que o mercado tem uma pesquisa de satisfação online.

Consegui escolher duas maçãs razoáveis e tornei a dar distância, bem quando vi a maçã mais perfeita de todas preguiçosamente descansada do outro lado da baia. Dei um passo, decidida a levá-la para casa, quando alguém foi mais rápido em chegar na maçã e eu só.

─ AAAAAAAAAAA! ─ gritar quando alguém pegava uma fruta que eu já estava cobiçando fazia parte da minha técnica.

─ Pela mãe! ─ a pessoa se assustou, deixando a maçã escapulir das mãos e cair no chão com um barulho triste.

Amor em tempos de pandemia [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora