QUATRE

107 20 26
                                    


Olho para Ícaro e tento decifrar o mistério de suas íris negras. Eu ainda sinto o calor aquecendo todos os meus músculos, ainda sinto o fervor em meu peito. Eu dancei como se fosse à última vez em minha vida. Dancei como se fosse o fim de minha alma. Dei o meu máximo e até mesmo extrapolei o limite do meu esforço.

Minha respiração se compassa a cada segundo, assim como o ritmo cardíaco. Mas, a adrenalina ainda flui, como chamas que não se apagam. Continuo a fitar os seus olhos, e mesmo com a distância de longas fileiras de assentos, o calor flui entre nós.

Subitamente, procuro olhar para o palco, mas ainda sinto o calor de seu olhar em meu rosto. Como combustão em minha pele, como anestésico para os meus músculos cansados.

Anthony segura a minha mão e acaricia o meu pulso. Às vezes ele é muito carinhoso como amigo, até de maneira exagerada. Mas eu gosto, me sinto acolhida por ele.

—Você foi incrível. Tenho certeza de que vai ficar em primeiro lugar. –Diz e aproxima o seu rosto do meu.

Apenas sorrio e devolvo o carinho que ele transmite aos meus punhos extremamente cansados.

—Você também vai conseguir. –Digo e acaricio os músculos de minhas coxas, sinto a presença de uma nova luxação em cada parte do meu corpo. Eu realmente extrapolei todos os meus limites. Mas era necessário, eu precisava mostrar todo o meu potencial.

—Não tenho tanta certeza. –Sussurra e afasta a sua mão do meu braço.

Olho para o seu rosto e detecto a clássica insegurança em suas feições. Ele não percebe, mas isso funciona como uma prisão para o talento nato dele. Anthony não percebe o dançarino excepcional que ele é, um dos melhores de Paris na modalidade hip hop.

Espero que ele se permita abandonar os seus medos e mostrar tudo o que aprendeu durante todos esses anos. Mesmo que não seja fácil, apenas quero que Anthony saiba o tamanho de seu potencial.

As apresentações continuam incessantemente, mas, não consigo prestar atenção, ainda me sinto eletrizada por todo o meu esforço. Ainda me sinto em chamas pelos olhos dele. Suas íris negras sugam toda a energia de meus músculos, e transmitem a intensidade de seu prazer. Mesmo não olhando diretamente em seu rosto, sinto que Ícaro continua a me fitar.

Em seguida, logo após a sucessão de dançarinos, Oliver sobe novamente ao palco. Outra lista jaz em suas mãos. Ele fita cada um de nós e olha para o papel.

—Para a categoria de hip hop, a audição será feita de maneira restrita, apenas coreógrafos e participantes desta modalidade deverão permanecer no anfiteatro. –Diz e analisa a reação frustrada de vários dançarinos, inclusive a minha. Eu estava ansiosa para ver a apresentação do meu melhor amigo, depois de todos esses meses de ensaio e dedicação. —O primeiro a se apresentar será Anthony Clement. O restante, por favor saiam. –Ordena e permanece no palco.

Olho para Anthony e aperto a sua mão. Ele parece ainda mais assustado e ansioso do que momentos antes. Suas pernas balançam freneticamente, pequenas contrações são visíveis em seus braços.

—Você vai ficar bem? –Pergunto. Ele apenas assente e continua a olhar para o horizonte. —Se quiser, eu posso ficar escondida e te observar do mesmo jeito.

—Não precisa. Oliver com certeza sabe de suas intenções. –Diz e aponta na direção do palco. Meu coreógrafo olha diretamente para nós dois e dá um pequeno sorriso irônico. —Pode ir. Prometo que vou dar o meu máximo.

Beijo a sua bochecha. Seu rosto cora momentaneamente e seus olhos me fitam indecifravelmente. Apenas me levanto e desvio dos diversos dançarinos em seus respectivos assentos. Abro caminho pelo corredor e passo pelas portas duplas do anfiteatro. Vários bailarinos caminham atrás de mim, como soldados em suas armaduras impecáveis. Às vezes, eles se parecem com sombras, sem produzir qualquer ruído e sem transmitir qualquer sentimento.

Ficamos no extenso corredor frio e escuro, nenhuma lâmpada ilumina nossos rostos, há apenas um silêncio e diversos estranhos. Apenas aguardando o restante das audições. Encosto na parede gélida e sinto a contração de meus músculos. Coloco minhas mãos em minhas coxas e relaxo, meus pés descalços imploram por um descanso.

Olho para a parede oposta e o quanto a sua pintura é pálida e fosca, em como a escuridão a torna incompleta com o ambiente. Observo os bailarinos que se reúnem do outro lado do corredor, eles parecem ansiosos, porém, mesmo assim, suas colunas permanecem retas. Não esboçam nem ao menos cansaço. Eles me observam de soslaio, mas desviam imediatamente. Parece que não sou o alvo de seu interesse.

Em seguida, uma sombra ressurge através das portas do anfiteatro, observo a sua altura e o seu modo de andar. Ele caminha de maneira descontraída pelo corredor e se aproxima ainda mais de mim. Ele encosta na parede oposta à minha, bem na minha frente. Ícaro levanta a cabeça e olha diretamente para mim, seus cachos negros se tornam ainda mais intrigantes com a falta de iluminação. Ele é incrivelmente alto e atraente. O collant preto marca o desenho de músculos em seu abdômen.

Seus olhos observam o meu rosto e focam em minhas coxas. Apenas com o seu olhar, sinto o meu corpo em um processo de combustão. Não dizemos nada, apenas nos encaramos, como se tentássemos retirar informações apenas com às nossas íris negras.

Olho para o chão, Ícaro também parece fazer o mesmo. Balanço os meus pés e olho para a vermelhidão em meus tendões. Apenas penso em Anthony e no quanto a insegurança o impede de fazer o que gosta e de mostrar o que sabe.

Continuo pensando, mas também, tento me distrair dos olhos de Ícaro. Olho para as lesões em meu tornozelo e para as marcas em meus joelhos, tudo isso é resultado de meses de luxações e esforços exagerados. Mas, me sinto realizada, eu mostrei tudo o que eu sabia. Mostrei a experiência adquirida em todos esses anos. Eu dancei como se fosse à última vez. E também como se fosse à primeira.

Dancei como se minha vida dependesse disso. Como se eu precisasse mostrar a minha capacidade.

Observo discretamente as sapatilhas beges de Ícaro e o quanto elas combinam com a sua postura imponente. Como ele consegue dançar tão bem enquanto seus pés ficam presos em jaulas de fibra? Eu jamais conseguiria dançar com algum calçado. É como se estivessem espremendo os seus dedos e tendões.

Tenho certeza de que nunca usarei uma dessas na minha vida. Já sinto a dor em meus pés apenas por pensar na possibilidade.

Os segundos demoram, a eternidade parece uma possibilidade mais próxima do que o término desta audição. Respiro fundo e cruzo os braços. Olho para Ícaro, suas íris negras me fitam com curiosidade. Sua pele bronzeada se torna ainda mais escura e mais brilhante com a falta de iluminação.

Ele é a personificação do próprio mistério.

Passos Opostos - Lançamento na Amazon (21/08)Onde histórias criam vida. Descubra agora