Lucas posta essa frase e em dez minutos tem cinquenta curtidas. Matheus curtiu, Thaís curtiu isso, Douglas curtiu e comentou com “Kkkkkk”. Uma menina comenta com um coraçãozinho. Lucas pensa que o povo sempre se liga mais na coisa da imagem. A foto puxando para o texto, o povo curtindo sem nem ter o trabalho de ler. Ao menos o texto é curto, isso ajuda. O povo curte as frases curtas. Os posts com foto.
A vida on-line é assim, e nela ele tem o que é preciso para sobreviver. Nela ele é feliz. Nela ele é mais bonito. A luz sob controle. O ângulo certo. Os filtros. A franja sob controle. Ele não leva muito a sério, mas não pode reclamar. Sabe que tem gente que nem isso tem. E ele tem algumas dezenas, algumas centenas, alguns milhares de amigos, fãs, seguidores. O que mais um garoto no ensino médio poderia querer? É só abrir a tela e encontrar uma nova cutucada.
Lucas pega o celular, vira a câmera para selfie, levanta o aparelho e checa o ângulo, a franja, a luz. Seu pug sobe na cama, já acostumado a posar para as fotos com o dono. Lucas pensa se as fotos são tão populares por causa dele ou do cachorro. De qualquer forma, hoje ele não está satisfeito com o que vê na tela.
– Desculpa, Tobias, foto agora não vai rolar.
Ah, Lucas se sente uma farsa. Ele pode enganar o povo on-line, não a si mesmo. Lá fora, a vida não é assim. Ao vivo, ele não é tão bonito. Ao vivo, ele não é nada popular. Ao vivo, ele não tem amigos, nem troca conversas tão divertidas, ninguém acha graça no que ele diz. A maioria do povo nem conhece o tom da voz dele, e ele não conseguiria manter o olhar confiante em movimento. Na tela aparecem vinte convites para o final de semana e tudo é longe, impossível, em São Paulo, em Porto Alegre e no Rio. O mundo real não convida Lucas para nada. Também, se convidasse, provavelmente os pais não o deixariam ir.
– Posso ir para São Paulo no feriado? – arrisca-se na mesa de jantar engolindo o suco para ajudar a frase a sair de uma vez.
O pai levanta o olhar. – Fazer o quê em São Paulo, Lucas? Você não está em semana de provas?
– Então, as provas terminam na véspera do feriado, vou estar bem livre e tal; queria só dar um rolé. Vai ter Comic Con...
– Você não queria dar um pulo no shopping novo que abriu aqui? – interrompe a mãe. – Está precisando mesmo de roupas novas, e a gente poderia aproveitar.
– Isso a gente pode fazer qualquer noite...
– Por que você iria passar o final de semana trancado em shopping ou em convenção em São Paulo? – continua o pai. – Deus me livre, Lucas. Tudo o que EU quero num final de semana é me livrar das convenções. Vá aproveitar um pouco o mundo lá fora. O Carlinhos sempre passa aqui te chamando pra andar de bicicleta e você sempre diz que está ocupado...
Carlinhos é o vizinho de doze anos. Lucas pensa se inconscientemente o pai não quer sempre diminuí-lo, mantê-lo como o pré-adolescente de joelho esfolado, matando passarinho com estilingue. Lucas nunca foi esse menino. E pensa se não é uma decepção. Quando o médico diz: “É um menino”, não é isso o que os pais visualizam? Bicicletas, joelhos, estilingue? Lucas cogita argumentar de novo que já cresceu – é menino, mas não é mais criança. Mas se argumentar que já cresceu, os pais podem ficar mais preocupados em deixá-lo ir para São Paulo. Vão dizer para ele então encontrar amigos da sua idade, nesta cidade.
Ele costumava ir a São Paulo, nas férias, nos feriados. Verdade que muitas vezes a mãe ia junto, mas ele estendia a permanência lá, na casa dos tios. Só que naquela época ele não aproveitava – ou não aproveitava a cidade. Passava a maior parte do tempo nos jogos do primo, Lords of Shadows, Final Fantasy, Demon’s Souls – não dá para jogar a sério Demon’s Souls sem queimar umas boas horas, ou um final de semana inteiro... um feriado prolongado. O primo foi crescendo e ele jogando cada vez mais sozinho, melhor assim. Agora o primo já está na faculdade e os pais não devem achar que é uma boa companhia para Lucas.
– Filho, o pessoal de São Paulo vem para cá nos finais de semana, para o interior, para ter sossego. Não vê nos jornais, o movimento nas estradas? E você quer ir para lá. Não entendo – continua o pai.
– Não entende porque você morou a vida toda lá, até enjoou.
O pai de Lucas acha que o filho o acompanha nos sonhos. Esquece que o filho já nasceu numa realidade diferente da deles – a única para o filho. Lucas cada vez mais sente que vai ter de fazer o caminho inverso. Desfazer o caminho dos pais. Não é para isso que servem os filhos?
– Você fala, fala, mas também passa o fim de semana trancado em casa – Lucas argumenta. – Nem sei quando foi a última vez que te vi “aproveitar o mundo lá fora”.
O pai ri. – Lucas! Eu não sou mais criança, né?!
Lucas olha torto para ele. Seu olhar comunica: “E acha que eu sou?”
O pai já corrige argumentando. – Tenha dó de seu velho pai cansado. Rererê. Quisera eu ter sua idade, sua energia. Acha que eu não queria jogar bola com os meninos nos campinhos por aí? Passo o dia todo trancado naquele escritório resolvendo pepino. Final de semana não tenho mesmo cabeça e energia para mais nada, infelizmente. Isso sem falar do meu joelho ferrado.
– E eu que tenho que acordar todo dia seis e meia da manhã para ir à escola!
– Arrumou o quarto, por sinal? – a mãe interrompe trazendo outro assunto do além. – Poderia aproveitar para fazer isso. Esvaziar aquelas gavetas, que estão um nojo. Deve ter papel de chocolate de três Páscoas passadas.
– Sério, mãe? Você quer que eu passe o feriado limpando gaveta?
– Não – responde o pai –, você pode curtir um pouco o mundo lá fora – argumenta em círculos. Lucas não tem mesmo como escapar daquilo.
Nem tem como escapar do peixe no prato – Lucas odeia peixe, e olha para o pug Tobias ao seu lado no chão. O cachorro desvia o olhar como se dissesse: “Não conte comigo; eu não como peixe.”
De volta ao quarto e ao computador depois do jantar, antes de esquentar a discussão, Lucas percebe que sente um certo alívio, por isso não insistiu mais. Não saberia mesmo o que fazer em São Paulo, se teria coragem de sair, para onde iria, se teria graça em encontrar o pessoal ao vivo. Talvez ele se decepcionasse com eles, provavelmente eles é que se decepcionariam. Ele perderia a “sua turma”, “seus amigos”, por mais que todos sejam só rostos e polegares de joinha numa tela. Melhor não mexer nisso.
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Lucas e Nicolas
RomanceAparentemente, eles têm pouco em comum: Lucas não tem talento para o esporte, mas é um gênio na escola. Sua vida social é nula, mas nas redes sociais se vira bem; Nicolas é o fortão da turma, bonito, popular. Suas notas são vergonhosas, mas nos espo...