NUM CANTINHO DA QUADRA, ATRÁS DE UMA GUARITA, ESCONDIDO NAS SOMBRAS, LUCAS COME

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     Gostaria de ser um pouco mais invisível, mas é o que tem para hoje. O sanduíche é de atum, percebe na primeira mordida, ele também gostaria que fosse outro – achou que era salpicão de frango. Droga, os pais sempre falam que a infância, que a adolescência são as melhores fases da vida... Então se a coisa só piora o caso é grave. Tem isso de aturar patrão, ter de sustentar família, blá-blá-blá, na vida adulta. Mas pelo menos você pode fazer as próprias escolhas, ser quem você quiser, COMER o que você quiser. Quando você é moleque, até o sanduíche que você come no recreio é decidido pelos pais! E se ele reclamar por causa de um sanduíche de atum, vão falar que ele é mimado e reclama por bobagem, que muita gente nem tem o que comer, blá-blá-blá.

     Fora o atum, seu recreio não tem recheio algum. O concreto da quadra, a sombra, a tentativa de ser invisível. Lucas não deveria fazer drama, ele sabe que está sozinho também porque quer, mas quais seriam as opções? Amizades de conveniência, tapa-buraco. Jonas, que era um colega mais amistoso, encheu o saco dele com todo aquele papo de igreja. E “isso é pecado” e “isso não é certo”. Lucas não quer ser aceito como amigo só porque o menino acha que é pecado recusar – e ainda está disposto a fazer de tudo para “salvá-lo”. Fora que ser visto com o Jonas... Tá, megavacilão ficar preocupado com quem ele pode ser visto, Lucas não quer mesmo ser um moleque preconceituoso. Mas não se identifica com toda aquela ideologia evangélica para vestir essa carapuça. Melhor então ficar sozinho, solitário, lonely , loser .

     Repara em Nicolas, lá na frente da quadra. Junto dos outros meninos, rindo, conversando... Ele acabou de dar um tapão na cabeça do Vinícius? Vinícius ri. Poxa, um cara como ele pode entrar numa escola nova e dias depois já estar zoando com todos da classe, totalmente integrado. É, talvez a adolescência seja a melhor fase da vida... para alguns. Aqueles que estejam no topo da cadeia, fortes, héteros, loiros num país de mestiços. Têm tudo isso e ainda são sustentados pelos pais. Certeza até de que esse Nicolas deve curtir seu sanduíche de atum. Ou então deve se manter à base de shake de whey protein. É, tem cara de whey protein.

     Nicolas cruza então olhares com ele. Ops, Lucas fixou o olhar tempo demais. Tem essa coisa, se você fica olhando muito tempo para uma pessoa, a pessoa acaba olhando para você, mesmo que você esteja longe, à sombra, invisível. Nicolas vai na direção dele. Danou-se, agora Lucas vai arrumar treta com o faixa preta da escola. Os outros colegas acompanham Nicolas só com o olhar, rindo. Ele chega até Lucas e se agacha no chão.

     – Tava me encarando?

     – N-não... – Lucas gagueja. – Tava... tava só pensando, com o olhar perdido.

     – Perdido em mim? – Nicolas está sério, de cara fechada.

      – Não, cara, tô quieto aqui.

Nicolas abre um sorriso. – Como é seu nome?

     – Lu-Lucas...

     – Que cê tá fazendo sozinho aí, escondido?

     – Tô... tô de boa, só passando o tempo, nada de mais...

     Nicolas comprime os olhos, o examina.

     – Você tem um ar misterioso... acho bacana. Lucas engole em seco. Não, em seco não, sente o atum descendo pela garganta.

     – Valeu. – Ele olha além de Nicolas. Vinícius e seus outros colegas estão lá longe na quadra, olhando para eles, rindo, esperando para ver o que Nicolas vai fazer. Nicolas se vira para ver para onde Lucas olha. Volta o olhar para ele.

     – Do que eles estão rindo?

     Lucas dá de ombros. Não sabe o que responder. Tem vontade de chorar. Não vai chorar.

     – Que babacões – Nicolas comenta. – Quer ver eu tirar esse sorrisinho do rosto deles?

     Lucas não responde. Não sabe se deve dizer sim, se deve dizer não. Nicolas está perto demais, perigoso demais. Então se aproxima mais ainda, a centímetros do rosto de Lucas. Vixe, vai rolar porrada, certeza. Mas o rosto está cada vez mais próximo. Tem algo esquisito aí.

     – Q-que você tá fazendo? – Lucas consegue gaguejar.

     – Você é gatinho, sabia? Meio estranho, mas eu gosto. Tem um jeito assim... descolado, alternativo...

     Lucas engole novamente. Aquilo não pode estar acontecendo. Olha os lábios carnudos de Nicolas, o hálito quente dele soprando em seu rosto. Tem receio do seu próprio bafo de atum com cebola. (Produção, me consegue um Trident?)

     – Eu acho que a gente devia dar um beijo – Nicolas continua. – Ia mostrar pra esses crianções como a gente é cool . Vamos?

     Lucas meneia a cabeça. Aquilo só pode ser uma armadilha. Ele não pode responder, não tem o que responder.

     – Vamos?! – Nicolas pressiona.

     – T-tudo bem...

     Nicolas se adianta. E com seus lábios quase se tocando, Lucas ganha consciência. Droga, aquilo não é real. A consciência o faz despertar antes mesmo de o beijo acontecer.

     Poooooooorra...

     Lucas acorda em sua cama. Tudo bem, não precisava ser real. Um beijo daqueles na escola provavelmente ia trazer treta demais para a vida dele. Mas... não podia acontecer pelo menos no sonho? Ele não podia ter acordado um pouquinho depois, depois de o beijo acontecer? Estava tão real... até o gosto do atum em sua boca. (E vai ficar só nisso, só no gosto do atum.)

      Lucas se revira na cama. Revira o sonho. Tobias acorda ao seu lado e o olha intrigado. Ia acontecer mesmo, com todas essas dúvidas na cabeça, essa... admiração pelo Nicolas, é claro que ele ia acabar sonhando. Lucas tenta entender o significado do sonho, não pode se enganar. Não precisa de um dicionário de sonhos nem que ninguém interprete. Ele está apaixonado. A cueca armada não deixa dúvidas.

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