Mas a questão é que o banheiro do colégio não oferece a mínima privacidade. São três banheiros coletivos, para todos os meninos, e não tem como trancar a porta. Nem mesmo dos reservados, a maioria está com a fechadura quebrada. Os que têm fechadura têm problemas com a privada; o máximo que dá para fazer num lugar desses é mijar, e olhe lá. O choro nem é tanto problema. Lucas já se pegou em situações piores, com o intestino solto, e a escola era o pior lugar para se estar. Agora ele só tem que engolir o choro, mas não engole. Já fez a prova do dia, não quer mais ficar na escola e consegue fugir cabulando as últimas aulas.A bicicleta com que ele veio vem bem a calhar. Lucas pedala para longe, rápido, passando por sua casa, saindo da cidade, chegando às ruazinhas de terra, que nem ficam tão longe assim. Pega uma trilhazinha entre as árvores. Quando vê, está na beira do rio; desce da bicicleta, senta-se no chão e finalmente deixa as lágrimas rolarem.
Sente-se tão solitário. Sentado sozinho, lá, à beira do rio, pelo menos ninguém vai incomodá-lo. O dia está claro, os pássaros cantam, uma garça-branca fica à espreita, buscando algum peixe. O rio até que está bonito e ele agradece por ter aquela paisagem para se isolar. De repente, numa cidade grande, ele nem teria para onde fugir, apenas trancar-se no quarto. A mãe batendo do lado de fora – perguntando se está tudo bem, se ele não quer comer um lanche. Como é difícil ser você mesmo, fazer as próprias escolhas, saber o que você realmente quer. As lágrimas rolam fartas e Lucas revira a mochila procurando algo para servir de lenço. Só tem mesmo a manga da camiseta.
Aos poucos vai sossegando. A paisagem ajuda a acalmar. A garça-branca consegue pegar o peixe e caminha lentamente para a beirada para comê-lo em paz. Então surgem outras garças. Querem aquilo que ela tão pacientemente conseguiu conquistar. Lucas busca no fundo da mochila um pacotinho de balas para si mesmo. Balas de ursinho. Adora aquela bagaça, mas nem isso pode comer tranquilo na escola sem os colegas tirarem sarro.
Enquanto come, Lucas repara numa figura bem ao longe, também na margem do rio. É um homem? Sim, e parece estar pescando. Hum, se homens e garças ainda pescam naquele rio, não deve estar tão poluído assim. O pai o convidou tantas vezes, Lucas recusou. Convenceu o pai de que aquele rio não prestava para pescar. Ele não gosta mesmo de peixe, mas podia ter sido um programa divertido, sei lá... se bem que precisa ter paciência para ficar sentado horas à beira de um rio, os mosquitos picando. Ai! Lucas bate num mosquito que pica seu pescoço. É, ele prefere ficar na frente do computador. Será que se morasse em São Paulo, se não tivesse pai, daria mais valor àquela vidinha?
Droga, o pescador também reparou em Lucas. Agora está vindo na sua direção. Acho que é hora de sair dali. Lucas se levanta, limpa a terra da calça. O homem se aproxima. É um cara magrelo, meio esfarrapado, coberto de tatuagens, uma vara de pesca improvisada. Parece algo entre o hippie, o punk e o mendigo. Talvez os três. Lucas sente o cheiro forte que vem dele.
– Opa, beleza?
– diz o estranho. – Belezzzz – diz Lucas já levantando a bicicleta para ir.
– Tava dando uma bola aí? – pergunta. Lucas não tem certeza, mas acha que o cara se refere a fumar maconha.
– Não, não. Só estava vendo o rio.
– Saquei. Quer dar uma bola? – o homem oferece.
– Tô de boa – Lucas responde timidamente.
– Também sempre venho pra cá – o homem continua –, fico meditando na vida... Me arruma uma aí? – O homem aponta para o saquinho de balas que Lucas tenta apressadamente enfiar na mochila.
– Pode ficar – Lucas passa o resto do saquinho todo para ele.
– Valeu. Senta aí – o homem diz sentando-se na grama.
– Preciso ir. Meu pai tá lá atrás com o carro me chamando – Lucas mente.
– Bah, não tem carro nenhum lá atrás – o homem diz, segurando a bicicleta. – Tu tava chorando?
– Não... é alergia... do mato...
– Hum... – O homem senta-se no chão com o pacote de balas.
Lucas não sabe muito bem o que fazer – se puxa a bicicleta e vai embora, se tenta não irritar o homem. Observa os dedos dele afundando no pacote de bala, finos, sujos, as unhas encardidas. O homem pega um punhado de ursinhos e oferece para Lucas. – Quer?
Lucas balança a cabeça. – Valeu, já comi muito.
– Senta aí – o homem insiste.
Lucas segura a bicicleta. – Eu preciso mesmo ir.
– Ir pra onde? Que pressa toda é essa na sua idade?
Lucas dá de ombros. Repara nas tatuagens borradas, desbotadas, que cobrem o pescoço do homem, os braços. O fedor que emana dele.
– Eu já fui como tu, sabia? Com a sua idade. Sempre certinho. Preocupado em fazer tudo o que me mandavam. Obedecer papai, mamãe, a sociedade... – Ele para um pouco e contempla o horizonte. – Terminei o colégio, fiz faculdade, me casei, tive filhos...
Lucas acha difícil de acreditar naquilo. Observa o homem com mais cuidado, quantos anos deve ter? Não parece tão velho assim, a cara um pouco craquelada de sol, uns olhos esverdeados... O cara devia ser bonito, até, quando mais jovem, com um bom banho, tirando aquelas tatuagens... Afe!, pensa Lucas. Agora eu estou secando até um mendigo.
– Um dia, tava de férias – o homem continua – num lugar como este. Olhando a natureza, os bichos, pensando em como eu tava desperdiçando minha vida. Esperando a permissão do meu chefe para poder tirar trinta dias de férias por ano. Esperando os trinta dias entre trezentos e oitenta do ano pra ser feliz... esperando minha mulher concordar comigo no lugar para viajar... simplesmente decidi não voltar. Desde então estou por aí, caminhando pelo mundo.
Lucas assente. Não inveja o homem. Queria poder tomar as próprias decisões, ser quem é de verdade, mas definitivamente não queria estar sujo e fedido dormindo ao relento, “trezentos e oitenta dias por ano”.
– Não sinto falta de nada. Tenho isso, o mundo. – O homem estende os braços para a paisagem. – Se estou cansado, eu durmo; se estou com fome, sempre arrumo algo para comer. Uma hora atrás, um boyzinho me deu umas cervejas. Agora mesmo, estava com vontade de comer um doce, daí te encontro com as balas...
Lucas pensa em dizer ao homem que aquilo se chama mendigar, mas não fala nada.
– O que eu preciso mesmo, tenho dentro de mim. A vida, a experiência, o conhecimento. Sabe que falo onze línguas?
Lucas ergue as sobrancelhas. Nem tem certeza de que há uso para onze línguas.
O homem então cai na risada. – Tô tirando uma com tua cara, rapá. Mal falo português. Ha-ha-ha. Nunca tive família, não, pai, mãe e mulher, só é eu e meu irmão. Não fiz faculdade nem nada. Vivo solto na vida desde que me conheço por gente.
Lucas concorda novamente.
– Bom, eu tenho família, e preciso ir. O homem assente.
– Tá, vai nessa. E valeu mesmo pelas balas.
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Lucas e Nicolas
RomanceAparentemente, eles têm pouco em comum: Lucas não tem talento para o esporte, mas é um gênio na escola. Sua vida social é nula, mas nas redes sociais se vira bem; Nicolas é o fortão da turma, bonito, popular. Suas notas são vergonhosas, mas nos espo...