20, Amor

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Minhas mãos procuram por mais uma fatia de bolo, meus dedos tocam primeiramente a calda cremosa do meu sabor preferido. Todo o chocolate derretido, tanto na massa quanto no recheio, me enche de bem-estar. Há muito eu não comia um bolo tão delicioso. O cheiro me lembra o forno da fazenda dos meus avós, e o gosto, sem dúvidas, vem do toque mágico de mãos de minha mãe. Está perfeito. Nada precisa ser tirado ou acrescentado. Mas cada vez que engulo, o sabor desaparece, e me sinto tentada em ter mais um pedaço. Um círculo vicioso de prazer. Minhas mãos, melosas da calda açucarada, tateiam em busca de mais uma fatia. Não preciso procurar por algo afiado a fim de obtê-la, o bolo já está devidamente cortado. Cortar um bolo de olhos vendados seria muito perigoso.

Apesar da deliciosa explosão de sabor, não ouço um único ruído. Gostaria de poder aproveitar minha refeição ao ar livre longe da poluição da cidade e do barulho característico da raiva e correria das pessoas no dia a dia. Mas posso aceitar comer em um lugar silencioso. Não é má ideia mesmo que eu não enxergue. Sou capaz de aproveitar do tato e sentir a fofura do bolo, e desfrutar do bom gosto dele. 

– Ela deveria ter acordado então. – uma voz familiar desperta todos os meus sentidos.

Minha boca ondeia em continuar comendo, levanto o rosto na direção da voz. Mesmo sem conseguir ver, imagino a silhueta de quem proferiu tal frase triste, quase lamentável, e instintivamente estendo um dos braços à procura dele. 

Não encontrar nada me deixa desesperada nos primeiros segundos. O silêncio retorna como se a voz nunca existisse, e mesmo ofegante, sentindo minha respiração oscilar algumas vezes, não sou capaz de me ouvir.

Por que me sinto assim? 

O gosto doce de uma das minhas sobremesas preferidas se torna como o nada. 

A fatia de bolo em minha mão cai no mesmo momento que me desespero em achar uma solução para tal silêncio. Por que eu não percebi, até agora, que neste lugar não há nenhum som?

Sinto a presença de alguém, uma familiaridade estranha do meu lado. Meu rosto rapidamente vai na direção, minha boca oscila em dizer, ou gritar, alguma coisa pelo simples fato de não me escutar. 

Toco a venda que me cega. Ela não está por cima dos meus ouvidos então não pode me impedir de ouvir. Mas também é resistente parecendo não ser feita de pano ou algo semelhante, me impossibilitando de somente enxergar. 

Gostaria que estivesse no nível de "somente", mas não ver nesse momento é agonizante. Ao mesmo tempo, não ouvir minha própria lamentação sobre tal sentimento torturante me deixa cada vez mais aflita.

Sinto um toque quente na testa.

Até esse momento não percebi a ausência de calor, e começo a tremer de frio. Tateio em busca do que me aquece, mas não encontro nada sólido. A presença do toque é contínua. Ouço o meu respirar. É um alívio poder me ouvir novamente. Mas não me atrevo a falar, com medo de que o toque vá embora. Entretanto, os suspiros desesperados roubam o total silêncio do ambiente e aos poucos o toque em minha testa se esvai.

– Não! – grito, sentindo minha garganta doer nos primeiros segundos.

Sem nem antes ter tentado, firmo minhas pernas me levantando de onde estive sentada todo esse tempo. O familiar cheiro do forno da fazenda desaparece com o vento frio e uivante. Tento novamente tirar a venda dos meus olhos, mas é como arranhar uma superfície lisa. Uso meus braços para me guiar pela frente, e apesar de acertar o vazio, insisto na ideia de que conseguirei ter de volta aquele toque e, quem sabe, descobrir o responsável por ele.

– Você é o problema. – ouço uma voz furiosa. – Por que te colocaram como centro nessa coreografia? Você subornou eles? – a voz fica mais perto ao final da frase. – Porque não faz sentido escolher uma pessoa como você. – consigo imaginar a expressão furiosa do garoto.

Me apaixonando por vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora