Olhos de Ressaca

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Mais um dia passava diante de meus olhos, sem que eu tivesse tempo de realmente fazer algo de útil antes de ter que ir trabalhar. Não tinha certeza se gostava de como as coisas estavam, mas sabia que não tinha outro jeito e já havia me acostumado.

Costume, uma palavra que pode nos fazer passar por muita coisa, até que você decide sair da sua zona de conforto para realmente se sentir confortável em sua própria pele novamente. Mas tudo se repete, um dia, como um ciclo vicioso.

Eu já havia feito inúmeras coisas para me encontrar novamente, mas algumas vezes se perder é necessário, só devemos garantir que não seja para sempre.

Estava caminhando em direção á cafeteria em que trabalho, onde eu tinha que vestir tiaras com orelhas de gato. A ideia era ser um café para crianças. E o que me incomodava de verdade nem eram as tiaras, e sim as crianças, eu não sei exatamente o porquê, mas tenho uma leve aversão por elas, mas é um sentimento mútuo. Aceitei o trabalho pois estava extremamente necessitada de dinheiro eu não tenho nenhuma formação acadêmica então arrumar de fato, um emprego, era sempre uma tarefa difícil. Por sorte meu amigo, Floyd, trabalha aqui, muito antes de mim, e me indicou pra nossa chefe, devo muito a ele.

Porém, quão cômico seria uma dupla, que claramente não se encaixava com o perfil do lugar, entra no estabelecimento como se fizessem isso sempre, se sentam em uma das mesas e começam a conversar algo aparentemente sério.

Seria cômico se não fosse trágico.

Floyd, prontamente foi até sua mesa, receptivo como sempre, sua pele negra brilhante em contraste com seu cabelo platinado, porte alto,  porém sem muitos músculos, poderiam dizer que ele também não se encaixava com o lugar. Se não fosse pelo seu amor incondicional pelas crianças.

Ela falou algo enquanto eu olhava de soslaio, enquanro estava no caixa, para o trio. Meu amigo então, voltou com uma notinha com os pedidos, entregando na cozinha. Olhei novamente para a dupla, um deles tinha a pele bronzeada e cabelos castanho-claro. Olhos caramelados e porte atlético. Seu estilo era mais despojado, como se estivesse acabado de sair de uma reunião chatíssima, tirado o terno, a gravata e abrisse dois botões da camisa social. Como se estivesse em casa. Esse, estava sempre sorrindo, mesmo que minimamente.

O outro, aparentemente do mesmo tamanho, tanto em altura quanto em músculos, tinha os cabelos e olhos negros, como carvão, com sua pele branca. Estava usando uma jaqueta de couro, pinta de badboy. Revirei os olhos.

- Sabrina! - me assustei com Floyd chamando a minha atenção.
- Sim?

- Você nem está prestando atenção no que falo! - disse, suspirando em descontentamento.

- Desculpe - pelo o que eu o conhecia, não era algo tão importante- poderia repetir?
Ele revirou os olhos, logo abrindo um sorriso contido. Os únicos lugares em que ele se sentia relaxado o suficiente para não ser tímido, era o trabalho e em casa. Apesar da clientela diferente que recebemos aquele dia, ele ainda conseguiu seguir seu padrão, quase acolhedor.

- Você viu como eles são lindos?- sabia que era esse o assunto importante que ele ficou tão zangado por eu não ouvir. Revirei os olhos mais uma vez.
- Floyd, se você for andar na rua, a cada esquina tem um desses - eu estava falando a verdade.

A aparência deles era totalmente diferente em relação ao local em que nos encontrávamos, mas eles estavam totalmente dentro do padrão estético, até de mais.

- Você não deveria ser tão exigente, quando foi que ficou com alguém pela última vez? - não é como eu eu não tivesse tido oportunidades, mas eu não sentia nada, e do que vale ficar com alguém que você não sente nada por? Já fiz isso, não repetiria, a sensação era como ser uma casca vazia, procurando por um preenchimento que eu sabia que não era físico.

Eu gostava da conexão física, da atração sexual, mas nada me fascinava mais que a conexão mental.

- Você sabe o que eu penso sobre isso - falei entediada.
- Certo, mas eu não sou assim, okay? - ele não estava, de fato, bravo - pode entregar os pedidos deles no meu lugar? Não sei se consigo mais uma vez.

Aí estava o problema de timidez de Floyd, com crianças não existia, mas com o resto do mundo era o completo oposto.

- Claro - eu já estava pegando e olhando a nota com o nome do comprador - Noskcej? - era o nome mais esquisito que já havia visto.

Dei de ombros para mim mesma, andando em direção aos dois.
- Senhor, Noskcej? - falei meio incerta, alternando meu olhar entre ambos.

- Sou eu - ele não sorria, nem olhava para mim, sua voz era levemente grossa e sutilmente rouca, olhei em sua direção, mas não pude o ver direito com seus cabelos tampando minha visão de seu rosto.

Assenti levemente e deixei lhes entreguei seus pedidos, agradecendo e me retirando logo depois.
Ainda podia ouvir sua voz, como se estivesse acabado de sussurrar em meu ouvido.

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Noskcej, como ele se denomina, se encontrava sentado na poltrona, relaxadamente, fingindo ouvir o que quer que seu amigo estivesse lhe dizendo. Não fazia sentido dois caras aparentemente machões estarem numa cafeteria onde o tema eram flores e corações, quase infantil, é machista eu sei, mas não me culpe, culpe o patriarcado.

A questão é que eles estavam lá pela décima vez consecutiva, enquanto discutiam como dois políticos em um acordo entre nações, tirando o fato de que Floyd, seu amigo, as vezes dava gargalhadas altas e contagiantes, que pouco pareciam abalar o outro.

Eu os observei muito, digamos, eram pessoas intrigantes que qualquer pessoa minimamente observadora teria curiosidade em olha-los.

Então ele me olhou, e pela primeira vez, verdadeiramente me viu, seus olhos tão negros quanto o mais denso breu, me sugando para a escuridão, como os olhos de Capitu em "Dom Casmurro", de ressaca, oblíquos e dissimulados.

O modo como ele me olhava me deixou apavorada, eram definitivamente olhos sombrios e tempestuosos, querendo me afogar. Senti como se ele estivesse olhando dentro da minha alma, além de mim. Sustentei seu olhar, desafiando-o. Pude ver ele dar seu já conhecido por mim, sorriso ladino, uma malícia não sexual que eu podia entender perfeitamente, para logo desviar o olhar e voltar a fingir prestar atenção em seu amigo.

Trilogia Aroma: CaféOnde histórias criam vida. Descubra agora