Eu não posso morrer.
Não digo isso no sentido de que tenho medo de morrer, porque é muito cedo ou porque ainda tenho que realizar os cinquenta e dois desejos da minha lista inútil de "coisas para fazer antes de morrer". Digo isso porque, até onde sei, é literalmente verdade. Entretanto, eu não sei qual a raiz disso. Não sei exatamente quando isso começou, apenas quando enfim percebi esse fato sobre mim.
Quando eu era ainda muito criança, meus pais biológicos foram assassinados; eu, até hoje, tenho pouca memória deles. Não sei se pelo trauma, não sei se pela idade. Em certos momentos, tenho déja vùs de cheiros, gostos, momentos, conversas. Mas não me lembro até hoje do rosto deles, dos seus nomes, de como eles falavam, de como riam, de como cuidavam de mim. Então, vivi por um ano em um orfanato até ser adotada pelos Wyle, meus atuais pais.
Acontece que eu não era nem a primeira e nem a única filha do Wyle. Eles já tinham uma filha biológica, Heather, três anos mais velha do que eu. E Heather era incrível. Diferente de todas as crianças que precisavam dividir a atenção dos pais com irmãos mais novos, Heather foi extremamente receptiva a mim, como se tivesse pedido por mim. Heather se tornou minha melhor amiga, além de uma verdadeira irmã, provando que nosso laço não precisava ser de sangue para sermos tão unidas e conectadas.
Entretanto, aos 17 anos, Heather morreu afogada.
Quando soube, enlouqueci. Heather era tudo pra mim, eu a amava mais do que meus novos pais. Era a única pessoa em quem eu confiava de verdade — e eu a perdi.
Após a morte de Heather, nossa casa entrou em silêncio absoluto por dias, seguido de choros abafados nos travesseiros, a constante falta de apetite e falta de autocuidado. E aos meus 14 anos, em um dia de solidão como todos os outros após a morte dela, percebi que o mundo nunca mais seria o mesmo. Que eu nunca mais seria a mesma. E que não havia sentido em continuar aqui, neste mundo, sem alguém como ela. A família já não era mais a mesma; o Sr. Wyle, papai, mal vinha para casa para encarar o quarto vazio de Heather, e a Sra. Wyle, mamãe, já vinha mostrando sua indiferença por mim.
Então, dois meses depois, criei coragem e tentei me matar. O método seria infalível para qualquer outra pessoa, mas, ironicamente, não se aplicou a mim. E foi como descobri que eu não podia morrer.
Existe um farol abandonado em uma praia muito afastada da cidade. Lembro-me de ter pego um ônibus até o limite da cidade, e depois, um táxi até aquela praia. Assim que o taxista foi embora, feliz com o dinheiro a mais que eu havia dado a ele, segui meu rumo até o farol.
O farol era alto, pouco mais de cinquenta metros, e após arrombar a porta, consegui subir. As escadas enferrujadas e mal cuidadas rangiam constantemente sob meus pés, ameaçando ceder a cada passo, mas eu seguia lucidamente, sem medo. Imaginava que eu fosse morrer antes mesmo de atingir o topo, pisando em falso em um degrau e a escada já falha, se partindo, me levando ao chão em uma queda fatal. A cena se repetiu vez após vez na minha cabeça, e cada rangido que a escada cada, eu me via caindo. Mas nada disso aconteceu. Cheguei ao topo do farol com tranquilidade, e atravessei a porta, indo para a sacada ao topo do farol.
Eu não pensei mais de uma vez. Não repassei um filme da minha vida, onde perdi todas as pessoas que eram verdadeiramente importantes para mim, na minha cabeça. Não discursei um monólogo solitário sobre a injustiça da vida, onde a morte leva as pessoas boas e deixam as ruins; onde a justiça dificilmente é aplicada para garotos ricos e influentes que matam meninas afogadas por achar que é diversão; onde uma criança pode crescer sem os pais e ser obrigada a implorar pelo amor de outra família, porque alguém tirou a vida deles.
Eu apenas fechei os olhos e me joguei.
A queda veio antes do que eu esperava.
A primeira coisa que senti foi a dor. Nunca havia sentido nada igual. A dor tomava meu corpo inteiro, cada pedaço dele, desde a ponta do pé até no fundo dos meus olhos. Então, veio a tontura, a náusea, uma ligeira sensação de vazio; imaginei que, enfim, minha alma estava indo para fora do meu corpo, e esperei encontrar a luz, ou a escuridão, que iria me levar para longe daquele mundo e daquele sofrimento.
Esperei pela a morte, mas ela não veio. O que veio, entretanto, foi o formigamento e o alívio. Deixei de sentir a dor intensa de antes e achei que fosse porque eu estava morrendo, mas, na verdade, a dor somente estava deixando de existir porque não existia nada mais para me fazer sentir dor. Sem que eu visse, meu corpo estava se curando completamente.
Não sei por quanto tempo fiquei lá estirada no chão, esperando enfim morrer, até perceber que isso não iria acontecer. Eu podia sentir meu corpo inteiro novamente, mas sem a dor que antes havia me assolado; pude me sentar no chão áspero em frente ao farol, pude virar a cabeça, olhar ao redor. Minhas roupas estavam com rasgos e manchas de sangue, mas, para minha surpresa, meu corpo estava intacto. Onde haviam rasgos, furos e manchas de sangue no tecido, abaixo mostrava uma pele branca, pálida e intocada.
Fiquei alguns minutos, sentada, tateando meu corpo, minha cabeça, meu rosto; tentando entender o que havia acontecido. Belisquei-me diversas vezes, crendo de que eu estava presa em um pesadelo, um sonho, ou no próprio limbo. Eu não entendia — eu havia me jogado do farol. Eu olhava para cima, e calculava: a queda era fatal. Qualquer pessoa morreria. Qualquer pessoa teria, no mínimo, um ferimento. E eu estava intocada. Eu não estava com um arranhão sequer.
Perguntei-me por alguns segundos se eu não tinha sonhado que havia me jogado, ou qualquer coisa do tipo. Duvidei da minha própria sanidade. Mas havia sangue nas minhas roupas, sangue no chão abaixo de mim, embora meu corpo estivesse em perfeito estado. Eu não sabia mais no que acreditar, no que pensar; eu apenas olhava para mim e para ao redor e tentava encontrar algum sentido para o que havia acabado de acontecer.
Nunca fui uma pessoa de qualquer tipo de religião; os Wyle eram agnósticos, e assim aprendi a ser. Mas a primeira coisa que passou pela minha cabeça, a primeira coisa minimamente sensata, era de que eu havia sido vítima de algum tipo de milagre. Que algum tipo de deus havia se apiedado de mim, do meu sofrimento, e resolvido que na verdade eu deveria ter mais uma chance de viver.
O problema é que eu não queria mais estar viva. Então, como uma bela teimosa que era, resolvi tentar me matar novamente.
Fiquei horas tentando findar minha vida: subia no farol e me jogava novamente da sacada, repetidas vezes; na última tentativa, empurrei com o pé um degrau frouxo da escada espiral enferrujada, e me permitir cair do topo da escada. Entretanto, o fim era sempre o mesmo: a dor vinha, meu corpo inteiro se quebrava, minha pele rasgava, minha visão escurecia, mas a morte não parecia querer saber de mim. Então, minutos depois, lá estava eu, inteira, como se nada tivesse acontecido.
Quando enfim percebi que, por alguma razão, a morte não me levaria naquele dia, desisti e voltei para casa, aos prantos, tomada pela frustração. Joguei minhas roupas surradas e ensanguentadas fora, tomei um banho demorado e fui dormir, me perguntando porque raios qualquer força superior existente nesse universo não me deixou morrer naquele dia.
Amanhã eu consigo, pensei comigo mesma. E o amanhã veio, e eu tentei, mas não consegui. Enfiei garfos nas tomadas, cortei meus pulsos, tentei me afogar; e o depois de amanhã veio, e a cada dia que passava, minhas tentativas de suicídio se tornavam ainda mais frequentes. Questionei minha sanidade; perguntei-me se eu já não estava morta e estava vivendo em algum tipo de inferno pessoal, onde tudo o que eu mais queria era morrer e não conseguia.
Foi quando resolvi começar a filmar minhas tentativas, para ter a certeza de que não estava delirando. E eu não estava: três anos depois, enfim, fui pega.
Minha mãe encontrou os vídeos e, horrorizada, me levou para ser internada no Grace Elmers, sem saber explicar aos médicos a razão da minha internação, exceto que eu tinha uma obsessão suicida. Nos três meses que fiquei lá, me medicaram com antidepressivos pesados — que não fizeram efeito algum — e fui obrigada a fazer terapia, onde tive que fingir que havia desistido das tentativas de suicídio e que estava passando a valorizar a vida.
Porque não havia nada que me permitisse morrer — e nenhuma cura para isso.
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A garota que não pode morrer - Série Midnight - Volume 1
FantasyLiv não pode morrer. Com uma regeneração fora do comum, todas as suas tentativas de suicídio foram falhas. Conformada de que teria de viver escondendo sua suposta aberração de todos, a última coisa que ela esperava era um convite para participar de...