"Agora, escuridão e segredos estão por toda a parte" - The Handmaid's Tale
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam quinze horas. Rey Solo, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rapidamente pelas portas de vidro da sala de jantar inferior, porém, não com rapidez suficiente para evitar que uma uma onda de pó áspera a acompanhasse.
O cômodo cheirava a repolho cozido e baunilha. Na parede do fundo, fora pendurado um quadro colorido, grande demais para a exibição interna. Representava apenas um rosto enorme de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de sessenta e poucos anos, de traços rústicos mas atraentes. O quadro de rosto enorme a fitava da parede enquanto pendurava o casaco de inverno e o chapéu no cabideiro, parecia uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda a parte. O Grande Irmão zela por ti, dizia a legenda.
Rey encaminhou-se para os três degraus de escada que levavam a cozinha e deixou as compras sobre o balcão. Às vezes ela se amedrontava com a forma como recebia as regras desse novo mundo, em quão fácil foi se habituar à ele considerando a vida que levava antes de Gilead. Talvez isso fosse o mais assustador, posto que uma parte de sua mente acredita estoicamente que ela deveria estranhar aquele quadro na parede e interpreta-lo com anormalidade, ainda assim, ela não o fazia. Seria isso, porventura, uma expressão de compreensão por parte de sua consciência a sua nova vida? Ela paralisou a tarefa de guardar os itens da sacola de compras e pensou sobre o assunto.
Relutante, ela concluiu que sim; aos poucos começava a conviver melhor com sua realidade do que fazia a oito anos atrás. Mas de que maneira ela não o faria? Os Estados Unidos que ela e todos conheciam sucumbiu tão repentinamente que quando se deram conta, já era tarde demais. Rey não viu outra escolha senão abraçar este mundo sombrio e sobreviver conforme eles a diziam.
Ela balançou a cabeça na intenção de espantar tais pensamentos, concentrando-se no que anteriormente fazia. Seu esposo chegaria em algumas horas e ela precisava preparar o jantar. Após terminar de abastecer a dispensa com os produtos recém comprados, Rey começou a descascar as batatas para o frango assado que faria para Ben. Em cinco meses de casamento ela descobrira que ele era silencioso, organizado, prático, ambicioso e dono de um emocional conflitante o qual ainda lhe causava arrepios. Ben não gostava de carne e odiava ser chamado pelo nome de batismo, embora fosse exigido por lei que o usasse no papel e por pessoas próximas, perante a sociedade de Gilead todos o conheciam como Kylo Ren. Rey não ousava perguntar a razão por trás disso, porém, havia ouvido sussurros das Marthas uma vez no mercado, tratar-se de algo relacionado ao seu pai.
Seus dedos forçaram uma pressão exagerada sobre a batata ao desliza-la pelo descascador. Era desconcertante constatar o quanto outras pessoas tinham acesso a particularidades da vida de seu marido, quando ela - a esposa - estava tão apartada dos detalhes. Desde que se casaram, Rey cumpriu com todas as obrigações esperadas de uma esposa. Ela até recusou uma Martha para limpar e cuidar da casa, um trabalho do qual ela poderia facilmente executar e mostrar o quão dedicada à ele conseguiria ser. E, ainda assim, ele mal conversava com ela. Por vezes, podia notar uma onda de fúria irradiando através dele que afligia a casa inteira, mas Rey nunca sabia se era ela a causadora daquele problema ou outra pessoa. Normalmente, desejava que o infortúnio jamais tangesse à si, desse modo sua mente não tentaria pinta-la como uma inútil e incômoda que sempre fazia tudo de errado.
Ao terminar de cortar as batatas, Rey apanhou a galinha temperada na geladeira, atribuindo as batatas e o restante dos ingredientes que ainda faltavam. Depois de colocar a comida no forno, ela limpou a cozinha, arrumou a mesa de jantar e correu escadas acima em direção ao seu quarto. Precisava de um banho. Ben chegaria a qualquer momento.
***
- Como foi o seu dia?
Rey observou seu esposo sentado no centro da mesa de mogno, desfrutando de sua refeição com satisfação e silêncio. Era um homem alto, corpulento, e muito atraente na opinião de sua esposa. Possuía cabelos pretos na altura dos ombros e uma postura rígida e intimidadora. Ele bebeu um gole de vinho e respondeu:
- Estressante - suspirou pesadamente, colocando a taça sobre a mesa novamente. - E o seu?
Ótimo, lá vamos nós de novo. Ela pensou.
- O mesmo de sempre - deu de ombros, engolindo o bolo de saliva que se formou em sua boca.
Rey desviou os olhos da figura de Solo para o seu prato inacabado. Sempre que buscava uma conversa com Ben, ele lhe dava respostas práticas e evasivas atirando suas intenções no vazio e erguendo um muro entre os dois, estabelecendo um limite que ela não deveria ultrapassar. Seus dentes capturaram um pedaço da carne interna de sua bochecha, mordendo-a de maneira forte. Era o jeito que Rey encontrava para se manter quieta e submissa ao esposo como lhe foi ensinada.
Bebendo um gole de vinho, ela tentou mais uma vez.
- Gostaria de uma sobremesa? Eu fiz torta de nozes.
Ele engoliu a comida, dirigindo-lhe o sexto olhar naquela noite. Sim, ela estava contando. Apesar de estarem casados a cinco meses, Rey e Ben quase não interagiam ou passavam muito tempo juntos. A relação deles era mais um compromisso civil de regras e delegada a sociedade do que algo íntimo e pessoal. Ela lembrou das palavras de uma das tias que a ensinou em sua adolescência: Sei que é difícil, mas mantenha a fé. Seremos recompensadas.
Ela aspirava que sim.
Posteriormente, após uma longa pausa ele sorriu, surpreendendo-a completamente.
- Claro. Você come comigo?
***
Todo o seu corpo é apossado pelo suor frio, a respiração completamente presa, bem como poderia jurar que não havia sangue quente circulando por suas veias. Ela espalmou a bancada de mármore do banheiro sentindo as lágrimas molharem suas bochechas. Rey lembrou do jantar que tivera com Ben esta noite. Como ele elogiou sua comida, sorriu e olhou para ela. Agora, tudo arruinado.
O sino no alto da torre, no centro da capital de Gilead, soou através da cidade anunciando o festivo de hoje à noite. A Cerimônia acontecia uma vez no mês em todas as casas das famílias as quais, até aquele momento, não possuíam um filho. Rey fazia parte da primeira leva de mulheres em Gilead que dispensavam a presença de uma Aia em casa, uma vez que segundos os médicos, não existia nada de errado para impedi-la de carregar uma criança.
Todavia, naquela noite, Rey esperava ansiosamente não ter de deitar-se em sua cama novamente e reprisar o episódio análogo que vinha fazendo nos últimos cinco meses. Ela torcia fervorosamente para que pudesse dar a notícia que seu esposo precisava ouvir, porém, ela não poderia. Ainda não.
Os passos dele se fizeram presentes atrás dela. Ela respirou fundo, jogando o teste de gravidez na lixeira, despindo-se do vestindo azul, e livrando o cabelo do coque que fazia parte das vestimentas obrigatórias do país. Ben a encarou encostado no batente da porta. Suspirando, ele lhe deu as costas, despindo-se para a cerimônia também.
A fertilidade é um dom que veio diretamente de Deus, pensou, então por qual motivo Deus não está me abençoando com ela?
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Luz Na Escuridão
FanfictionDepois que um atentado terrorista ceifa a vida do Presidente dos Estados Unidos e de grande parte dos outros políticos eleitos, uma facção católica toma o poder com o intuito declarado de restaurar a paz. O grupo transforma o país na República de Gi...