The Ignorance is a Blessing

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“Você vê as coisas. Você guarda silêncio sobre elas. E você compreende” — As Vantagens de ser invisível

Rey Solo

Os Guardiões estão sentados nos assentos da frente do carro enquanto estou no detrás, ao lado da janela fechada, acompanhando o movimento nas ruas. Embora não esteja mais na área cercada reservada aos Comandantes, aqui também há casas grandes. Na frente de uma delas um Guardião encontra-se cortando a grama. Os gramados são bem cuidados, as fachadas, graciosas, em bom estado; elas são como uma das belas fotografias que se costumavam imprimir nas revistas sobre casas e jardins e decoração de interiores.

Lembro-me disso porque minha mãe possuía uma pilha delas sob a mesinha de centro de nossa sala de estar: se eu fechasse os olhos agora, posso visualizá-la sentada de pernas cruzadas no sofá folheando as páginas, me observando pelo canto do olho assistindo televisão. Existe a mesma ausência de pessoas, a mesma aparência de estarem adormecidas. A rua é quase como um museu, ou uma rua numa cidade modelo, construída para mostrar a maneira como as pessoas costumavam viver.

Como naquelas fotografias, naqueles museus, naquelas cidades modelos, não há crianças.

Esse é o coração de Gilead onde a guerra não pode penetrar nem se intrometer, a não ser pela televisão. Onde se localizam os limites não sabemos ao certo, eles variam, de acordo com os ataques e contra-ataques; porém este é o centro, onde nada se move. A República de Gilead, dizia Tia Lydia, não conhece fronteiras. Gilead está dentro de você.

O carro dobra a esquina e entramos na rua principal, onde há mais tráfego. Carros passam, a maioria deles pretos, alguns cinzentos e marrons. Há muitas mulheres com cestas, algumas vestidas de vermelho, algumas do tom verde opaco das Marthas, algumas com os vestidos listrados, de vermelho, azul e verde, ordinários e feitos com pouco tecido, que são típicos das mulheres dos homens mais pobres. Econoesposas*, é como são conhecidas. Essas mulheres não estão divididas segundo funções a desempenhar. Elas têm que fazer tudo, se puderem. Por vezes há uma mulher toda de preto, uma viúva. Costumava haver um número maior delas, mas parecem estar diminuindo.

Você não vê as Esposas de Comandantes — como eu — nas calçadas. Apenas em carros.

As calçadas aqui são de cimento. Como uma criança, tenho vontade de descer do carro e peregrinar por elas, evitando pisar nas rachaduras. Estou me recordando de meus pés nessas calçadas, no tempo de antes, e o que eu costumava usar neles. Às vezes eram sapatilhas customizadas por diferentes tecidos ou de couro brilhante, ou tênis de pano colorido, alguns deles de cano longo abrangendo listras ao redor das bordas. Visto calça jeans e macacões nessas lembranças, mas por vezes são shorts e camisetas também.

Em cada uma delas estou acompanhada de uma mulher com três coques na cabeça semelhante aos meus, exibindo um sorriso nos lábios enquanto enrolava sua mão na minha. Passeamos tranquilamente por estas ruas apinhadas de prédios e estabelecimentos em volta. No céu sob nossos crânios há nuvens brancas felpudas, daquelas que parecem ovelhas sem cabeça. Tento convencê-la a comermos torta salgada no jantar e sorvete de sobremesa, mas ela ri dos meus esforços, me advertindo acerca dos perigos do excesso de sal e açúcar. Era um assunto de conversa, uma brincadeira de domingo.

Embora meus olhos estejam sempre voltados para ela, não consigo mais ver o seu rosto. Meu estômago dói quando me vejo obrigada a reconhecer a infeliz verdade que a imagem dela está se desintegrando de minhas memórias, tornando-se um borrão em meus sonhos, desaparecendo pouco a pouco diante dos meus olhos sem que eu seja capaz de fazer nada para impedir.

Deixo essa revelação se derramar em mim conforme vou torcendo as mãos uma na outra em cima do meu colo, servindo unicamente para me fazer sentir-se mais inútil do que nunca. Quero desesperadamente gritar ou ferir alguém ou alguma coisa. Porém, apenas me consinto a continuar na posição em que me encontro; os membros rígidos, o queixo pressionado e as sobrancelhas franzidas, pensando em como não consigo conceber um filho, reparar os desentendimentos com meu marido e conservar a aparência da responsável por me trazer ao mundo em minha memória.

A Luz Na EscuridãoOnde histórias criam vida. Descubra agora