Prólogo

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    O cheiro de sangue é nauseante, há dele por todo o lugar. Os gritos distantes de dor chegam aos meus ouvidos como cacofonia. Me afasto rastejando do entulho onde fui parar, minha cabeça dói e meus pensamentos não estão claros. Tento localizar aonde estou, borrões de verde e marrom entram na minha vista desfocada. Aos poucos minha visão clareia e consigo identificar onde estou. Arvores me cercam por todo lado - uma floresta, mas qual?
    Cada vez que avanço meu corpo protesta, raspando contra terra seca, arranhando minha barriga, pernas e braços. olho para trás a fim de ver de onde a dor lacerante está vindo. Reprimo um suspiro quando vejo o osso da minha coxa exposta.
Não posso me dar o luxo de sucumbir à dor, não enquanto eu não a achar. não enquanto não achar a minha irmã.
    - Sara- tento gritar, mas a minha garganta arranha e o som não sai mais que um sussurro- Sara, cadê você? - tento de novo.
    Nenhuma resposta vem.
    Empurro os braços no chão para levantar o tronco e olhar ao redor, um homem caminha sem rumo, ainda atordoado do acidente, mas aparentemente bem. Do outro lado uma mulher tenta improvisar uma atadura para seu braço quebrado ao lado de uma criança que não parava de chorar. Não vejo mais ninguém ao redor. Todos já devem estar mortos, penso. Torço para que ela não esteja entre eles.
    Não estou distraída o suficiente para não sentir quando uma mão envolve o meu pulso com força, um braço erguido através de uma pequena passagem do entulho. Inclino a cabeça para tentar ver quem é o coitado que foi esmagado. Meu sangue gela e um arrepio percorre minha espinha quando vejo quem está diante de mim. Sara. Minha irmã.
Seguro sua mão e tento me aproximar, mas quase não há espaço. Uma placa a esmaga da cintura pra baixo e sua respiração está pesada, com intervalos cada vez maiores.
    - Aguente firme, tudo bem? Vou conseguir ajuda- digo com os olhos lacrimejando.
Sara apenas dá um leve aceno com a cabeça, quase imperceptível.
    - Socorro! alguém me ajuda! - grito tirando todo o ar do meu pulmão, até minha garganta queimar.
    A duas pessoas que encontrei momentos antes vieram ao meu encontro, não precisei falar para eles entenderem o que era para fazer. Todo esforço de mover a placa do lugar foi em vão, estavam tão moribundos quando eu. Lancei outro olhar para minha irmã, conseguia ver o brilho dos seus olhos verdes se esvaindo, seu olhar encontrou com o meu e nele não havia medo, apenas aceitação, ela sabia que estava partindo e eu também.
    - Amo você - minha voz falhou ao pronunciar essa palavra.
    Segurei sua mão firme, não para acalmá-la, mas sim por mim. O fantasma de um sorriso perambulou pelo seu rosto.
     Não chorei, não senti nada além de um vazio quando o brilho de seus olhos se apagou e o seu peito parou de subir. Fiquei com a minha mão entrelaçada à dela até não as sentir mais, até seu corpo começar a ficar frio e o tom rosado da sua pele se tornar cinza.
     Estava escurecendo quando finalmente consegui sentar, junto com a noite o frio também veio e o barulho da vida na floresta começou a se manifestar. Os poucos sobreviventes do acidente, a essa altura, já estavam todos reunidos, amontoados para se aquecerem no calor corporal um do outro. Mas não era o suficiente para impedir o bater de dentes. Sentia que meu fim estava próximo, como o da minha irmã, só não sabia se morreria de hipotermia ou hemorragia. A ajuda estava distante, disso eu tinha certeza, provavelmente não devem nem terem sido acionadas ainda.
     Não havia esperanças para mim.
     Quando o frio já estava insuportável e minha respiração irregular, minha visão começou a embaçar, não conseguia mais pensar com clareza, era como estar chapada. Talvez estivesse mesmo, pois quando estava prestes a desistir, fechar meus olhos e seguir para o outro mundo um vislumbre de um rosto parou diante de mim.
      Um garoto olhava para mim, a pele limpa e o cabelo loiro bem arrumado. Não lembro de tê-lo visto entre os sobreviventes, mas não podia contar com a minha memória agora. Seus olhos cinzas se encontram com os meus, havia gentileza neles quase que angelical. Às suas costas manchas douradas brilhavam, com uma intensidade que faziam meus olhos doerem. Pensei sentir seu toque na minha bochecha e a voz melódica dele quando se dirigiu a mim.
      -Não posso levar você ainda, não está pronta para isso. - Suas sobrancelhas se uniram no meio da testa, confuso - você é difícil de decifrar, está em dúvida, não sabe se quer ou não partir.
      Não respondi, não pude, pois minha última gota de força se foi e meus olhos se fecharam pesadamente

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